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Artigo - Marisa: um suave sorriso

Wagner Braga Batista

 

- Quero que você saiba que sou reacionária. Dessas que gostavam do regime militar e não passavam sequer pela porta de um sindicato. Ouviu?

 

Nesse tom de provocação, conheci Marisa.

 

A ADUFPB-CG ficava numa sala enquistada no andar térreo no antigo Departamento de Matemática.

 

Todas as manhãs, ouvíamos o barulho de sua caminhonete chegando e, a seguir, defrontávamo-nos com o sarcasmo fino dessa professora.

 

No pequeno hall de entrada, às vezes se dirigia à minha querida Telma, injustamente demitida do sindicato, ou à Dalva, na secretaria do DME, no lado oposto.

 

Aos poucos entrei nessa tríade. Passei a ser objeto da atenção de Marisa. Ora implicava com a minha barba, ora com pesado bornal de couro no qual carregava meus trastes.

 

Aos poucos, também deixava de lado possíveis ou imaginárias reservas. Como se quisesse resguardar essa aproximação, advertia: política não, professor ! Diante de tão enfática advertência, começamos a conversar sobre coisas simples. Simples,  porém não menos importantes.

 

Com carinho, aproximou-se também de minha filha, Joaninha, que se via forçada a permanecer comigo naquele pequeno recinto, às vezes dormindo numa cesta de jornais.

 

Com o passar do tempo, Marisa revelava uma outra compleição.

 

No início dos anos 80, a relação entre professores, polarizada por diferenças ideológicas, parecia-nos mais sincera e consistente. Sem sombra de dúvida, era mais desinteressada, generosa e coerente. Como boi zebu e carrapato, cada qual tinha sua identidade.

 

Coexistíamos num embate salutar, que nos revigorava a cada dia. Hoje reconhecemos que, ao seu modo, muitos colegas que reputávamos como conservadores ou atrasados, tinham inequívocos compromissos com a universidade pública. Com o tempo, também constatamos que muitos destes conservadores sempre foram potencialmente progressistas. E colegas que faziam e fazem profissão de fé em favor da educação pública continuam dando as costas à universidade.

 

 Nesse relicário acadêmico, a dialética nunca deixou de operar. Descobrimos que um podia se converter no outro, já que, como diziam, o outro, também era um.

 

Foi assim. E assim, fomos nos conhecendo.

 

Aquela conjuntura turbulenta e estimulante nos convidada a ser protagonistas da transformação da sociedade e da democratização da universidade. A transição do regime militar instaurara a uma democracia anômala. Mantendo sob controle forças renovadoras, tornara-se espaço privilegiado para neófitos. Marisa , não se incluía entre eles. Continuava participante, solidária, porém, provocativamente, ao seu modo, “reacionária”.

 

Era impossível escapar de suas provocações ou gozações. Topávamos a toda hora naquele quadrante do Departamento de Matemática. No forçoso convívio diário, a dinâmica do movimento docente, as reuniões de professores, as sucessivas assembléias e depois as greves, iam me fazendo ver uma outra pessoa. Marisa já não era mais aquela pessoa turrona, aparentemente seca e agressiva.

 

Era uma pessoa envolvente, com certo élan, falava de coisas triviais. Coisas que compõem o universo de interesses de todo ser humano. De plantas, de bichos, dessas coisas sem alma que tem mais alma que a gente que diz ter alma. Ela que era gente, desenhava-se para mim com a naturalidade dos bichos que tanto amava. Como esses bichos, que inicialmente metem medo e depois despertam enorme afeição. Esses bichos que não enganam o coração da gente.

 

 Mostrara-se, então, em sua essência: uma pessoa digna, solidária, receptiva, sensível e, portanto, bastante permeável a lidar com seus diferentes. Graças as minhas convicções, eu era certamente um deles. Um pretenso revolucionário portador de uma pesada carga de preconceitos, ranços e ressentimentos inadmissíveis em quem quer mudar mundo. Ela, uma mulher que se declarava politicamente conservadora, mas se mostrava detentora de arrojo e coragem incomuns. Uma mulher excêntrica com atitudes que afrontavam a hipocrisia reinante em nosso meio. Essa disjunção era marcante numa conduta que implícita e explicitamente questionava uma cultura acadêmica montada em álibis de tolerância e fortes mecanismos de dissimulação.

 

Recentemente, foi com tristeza que tomei conhecimento de seu estado de saúde.

 

Seu suplício iniciou dia 21 de outubro, perdurando até o último sábado. Talvez não tivesse a exata noção da gravidade de sua doença. Talvez, intimamente, quisesse se preservar e tentasse demonstrar para os amigos que aquela seria apenas mais uma dura jornada, como tantas em sua vida, sempre superadas.

 

Marisa foi uma lutadora. Uma grande companheira, uma mulher de fibra que não recuou diante dos desafios que a vida lhe impôs.

 

Sempre acompanhada de Terezinha, sua fiel companheira de 23 anos, continuou resistindo arduamente. Ao seu lado, incansável, Terezinha jamais esmoreceu. Em situações extremamente adversas, buscava ânimo, reunia forças e transmitia carinho e segurança para Marisa.  Manteve-se até o fim, fazendo tudo que foi possível, para atenuar o sofrimento e a dor da sua companheira diante de um quadro verdadeiramente atroz. Marisa lutou até o fim. Às vezes se abatia e, de pronto, novamente reagia e se recuperava. Inúmeras vezes, confidenciou que se não fosse por causa de Terezinha já teria morrido.

 

Seus médicos André Brasileiro e Suzana Pinto, atenciosos e diligentes, conduziram-se como amigos que lhe infundiam perseverança e animo, ciosos de que apenas mitigavam sua agonia.

 

Neste penoso calvário, em meados de fevereiro foi internada na Unidade de Tratamento Intensivo- UTI. Pensávamos que não saísse de lá. Bem ao seu jeito, após 10 dias, saiu. Voltou a respirar sem aparelhos, a ver a luz do dia, a privar com os amigos no leito do hospital. Limitada em seus movimentos, ainda tentava se expressar de todas as maneiras possíveis.

 

Com júbilo guardo uma das últimas e mais significativas imagens desta saudosa amiga.

 

Fui visitá-la. Diversamente dos dias anteriores, desta feita Marisa estava receptiva, alegre, respondendo positivamente as nossas sinalizações.

 

Naquela manhã, o apartamento parecia radiante, o calor e o suor noturno tinham sido abrandados pelo banho na maca. Quem já se viu nessa situação, sabe a sensação de prazer que o banho provoca. Revigorante,  deixara Marisa, pode-se dizer, feliz.

É essa imagem que procuro preservar.

 

Ao me despedir, renovei como de hábito, o apelo para que mantivesse o ânimo e o alto austral. Palavras, que às vezes, não tinham mais rebatimento.

 

Surpreendentemente, numa manifestação de entusiasmo incontido, Marisa ergueu o punho, como se quisesse dizer não mais que isto: Sim, pode ter certeza !

 

Ante o inesperado ímpeto desta amiga, em avançado estado de morbidez , desconcertado, interpelei : Quer dizer que você agora você é comunista?

 

Sarcástica, com a fala e os gestos limitados, lançou-me apenas um olhar furtivo.

 

Foi assim que a fixei na lembrança. Eu indo embora e Marisa ficando pra trás. Saí do hospital levando comigo a imagem daquele sorriso, síntese do que Marisa fora em vida. Um carinhoso, suave e definitivo sorriso.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG.


Data: 22/03/2010