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Artigo - Lula, Chico César e quilombolas

Wagner Braga Batista

 

Como numa peça teatral, comporemos esse texto com atos contínuos.

Abrem-se as cortinas: Conferencia Nacional de Cultura. Ebulição. Proclama-se a defesa da diversidade, o respeito ao pluralismo e às especificidades culturais.

 

Um protagonista contesta e adverte.

- Endossamos esta consigna, porém cabem algumas advertências sobre sua concretização.

 

Os ruídos interferem em sua explanação, mas de pronto corrige a postura e o tom de voz:

-O neoliberalismo apelou ao respeito à diversidade e às diferenças sociais, fez delas uma de suas mais poderosas bandeiras. Semeava ilusões. No plano ideológico celebrava a ascensão de ícones de minorias discriminadas e na prática subtraia seus direitos, sufocava suas aspirações e silenciava,  por meio de sutis expedientes,  suas vozes mais autenticas.

 

Com mais veemência denunciou:

 - Celebrou  diferenças para cristalizar seculares desigualdades sociais.

 

Interrupção do discurso. Luzes e sons associados à exuberante coreografia, introduzem afro-descentes reconhecidos e valorizados pelo seu sucesso profissional, pelo seu poder de compra e pelo prestigio social. No palco, índios e integrantes de comunidades marginalizadas fazem malabarismos. Ganham visibilidade pelo exotismo, pela beleza física. Um gestor cultural acena. Chama a atenção para peculiaridades de seus adereços. Pelo diferencial que representam para a indústria de modas. Gays, lésbicas, transexuais, cadenciam o avatar da integração ao mercado. Sob holofotes, ganham destaque. Brilham, não mais pela defesa da identidade grupal, pelo reconhecimento de seus parceiros, pelos direitos humanos e contra homofobia. Agora são festejados como figuras excêntricas. Bafejados pelo glamour, banalizados por veículos de comunicação. Não são mais um drama, tornaram-se espetáculo burlesco. Celebridades adeptas de novas crenças, aliadas daqueles que ainda os oprimem.

 

Eis que vocifera um novo personagem:

- A indústria cultural e a mídia produziram essa metamorfose. Elegeram plataformas inconsistentes e transformaram clones em celebridades. São expressões falsificadas daqueles que lutaram pela emancipação de seus iguais. Hoje são os neófitos  que usurparam seus lugares.

 

O diretor interrompe. Pede moderação.

-Preparemo-nos para a catarse coletiva.

 

Lula desponta no meio da massa. Chamando à razão, à realidade, dá o compasso. Organiza a coreografia de trabalhadores, grupos populares, empresários socialmente responsáveis e inescrupulosos representantes de interesses privados. Harmoniosamente interagem sob a direção do grande timoneiro.

 

O velho Lula rouba a cena. É o transe geral.

 

Fluente, simpático e habilidoso, dá seu recado. O que diz, não sei. Sei, apenas, que todos aclamam, aprovam. Menos uma voz destoante. Distante, se insurge quando Lula se refere a quilombolas.

 

“É uma voz isolada”. Denuncia um xeleleu.

 

“Vem lá do interior do Pará”.

 

Cai a cortina. Tem início o próximo ato.

 

Chico César se apresenta. Não como artista, cantor, compositor, mas, isto sim, como agente responsável pela formulação e execução de política cultural. Chico também é negro. Negro, como tantos negros comprometidos com transformações sociais. Diante do público, não hesita. Defende uma política pública, não qualquer política pública. Uma política que tenha objetivos precisos e prioridades claras. Que seja abrangente e consistente, que resguarde autênticas matrizes culturais nordestinas.  Sem ser gramsciano, anuncia um outro ressurgimento.

 

- Quero ver artistas, compositores, músicos, instrumentistas, identificados com a autentica cultura popular nordestina. Quero vê-los ressurgir em grandiosos  eventos culturais.

 

Ato contínuo. Muda o cenário. Não são mais as grandes massas que estão em cena.

 

Insistente, uma quilombola pede a palavra. Tenta falar e não consegue. Assim como Chico César, também é negra. Diversamente dele é uma mulher. Igual a ele é tangenciada por olhares de esguelha. Tem dificuldades de  articulação e de expressão. É uma mulher rude, como tantas que esses multiplicadores, facilitares, gestores e executores de políticas culturais, avessos a preconceitos, vêem como excêntrica. Não pela beleza ou pela elegância de gestos, mas pelo atrevimento. Porte tacanho, tronco atarracado, traz as marcas da vida e de uma cultura singular. Essa cultura marginal e periférica que ousadamente quer preservar.

 

Como Lula, também é negra. Mãe de sete filhos, avó de três netos, veio do interior do Pará, percorreu rios e igarapés. Viajou três dias de ônibus, utilizando 15 reais para se alimentar e satisfazer suas necessidades fisiológicas nas rodoviárias da vida.

 

Ela veio lá do Pará. Pode ser Maria, Severina, das Dores, sei lá. È Diana. Diana, uma guerreira. Luta, se comove e ensina a chorar.

 

Chico César intercede:

 Um rincão do Pará é a minha mama áfrica. Mama áfrica... quilombola.”

 

Num rincão do Pará vivem e sofrem 180 milhões de Lulas perplexos. Despencam de imaginários edifícios em São Paulo e se afogam em praias do Rio, recônditas, no interior do Pará.  Comungam em prisões, são devorados pelo crack, assassinados por pistoleiros, no interior do Pará.

 

Lula conhece essa mulher, porém não se vê nessa mulher. Nessa dimensão incongruente de nossa cultura que não contempla essa mulher.

 

Abrem-se de novo as cortinas. Em planos distintos, Lula, Chico César e Diana movimentam-se pelo cenário. Estão confusos. Vêem-se, mas não se reconhecem. Estão perdidos e se multiplicam em meio a essa gente perdida em um rincão do Pará. Gente anônima e sem rosto, índios e negros, mulheres e crianças, homossexuais e prostitutas, trabalhadores expropriados, crentes e agnósticos, que querem falar. Essa gente perdida que quer dizer o que pensa e decidir o que quer.

 

Lula e Chico César são tantas Dianas, sei lá. São iguais, se confundem. Nem vale a pena contar, pois o tempo vai se esgotar.

Súbito, o epíteto.

 

Em meio a tanta estranheza, Diana tem uma única certeza, quer apenas falar:

-“Ele é presidente!” repete indignada.

- “Então como pode? Como pode ele me chamar pelo nome, se não me reconhece?  Como pode dizer quilombola, se não sabe quem é meu povo?. Como pode falar da gente se não quer ouvir  nossa voz”.

 

Contundente, com lágrimas nos olhos, finaliza:

- “Como pode falar de nós, se não nos identifica.”

Abrem-se as cortinas desenrola-se um novo ato.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 31/03/2010