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Empresas já importam funcionários

Falta de mão de obra qualificada leva companhias a recrutar pessoal no exterior e criar cursos universitários para treinar funcionários

 

O apagão de mão de obra qualificada no Brasil fez as grandes empresas nacionais se mexerem para tentar preencher vagas e evitar, num futuro próximo, um blecaute generalizado. A maior aposta é na formação, por conta própria, de profissionais especializados, por meio de universidades corporativas ou em parceria com instituições de ensino.

 

Quem não tem tempo para criar esse funcionário está à caça de mão de obra pronta no mercado brasileiro e lá fora - numa movimentação considerada inédita, e que guarda apenas semelhanças com o que se viu na época da abertura econômica. Um estudo divulgado recentemente pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea) estima que quatro setores, entre eles o de construção civil, terão dificuldades para preencher 320 mil vagas destinadas a profissionais com qualificação e experiência em 2010.

 

Na Vale, a procura principalmente por engenheiros fez a companhia retomar e intensificar programas de recrutamento, que estavam suspensos havia dois anos. "Em alguns casos, temos vagas, precisamos deles, mas não encontramos os profissionais", disse a gerente de Atração para Seleção de Pessoas da mineradora, Hanna Meirelles.

 

Na semana passada, a Vale anunciou um processo seletivo para contratação de 51 engenheiros. Eles serão treinados para gerir novos projetos. É a primeira vez que a empresa oferece um curso de pós-graduação desse tipo para novos funcionários - o que explica a novidade é a cifra de US$ 13 bilhões reservada a novos projetos nos próximos cinco anos.

 

No ano passado, a Vale já havia desenvolvido um programa de especialização nas áreas de mineração, ferrovia e portos. Não existem cursos de ensino superior para essas duas últimas áreas no Brasil. Por isso, a Vale formou gratuitamente os 120 engenheiros, sem o compromisso de contratá-los, mas acabou absorvendo 100% deles.

 

Rafael Ribas, de 25 anos, está nesse grupo. Deixou o mundo das telecomunicações, para o qual havia se preparado durante cinco anos, e começou a trabalhar numa ferrovia em São Luís do Maranhão, depois que passou pelo curso da Vale. "Coloquei na cabeça que seria um engenheiro ferroviário para trabalhar numa área que, sem dúvida, vai crescer muito nos últimos anos."

 

A preocupação da AmBev em driblar o apagão de mão de obra também se reflete na formação interna. No ano passado, a cervejaria investiu R$ 16,3 milhões em sua universidade corporativa, que resultou no treinamento de 32 mil pessoas - o número supera a própria quantidade de funcionários da AmBev, hoje em 24 mil.

 

"É uma maneira de acelerar o desenvolvimento desse profissional na empresa e suprir mais rapidamente possíveis lacunas em cargos de gerência", afirmou Thiago Porto, diretor de gestão de pessoas da cervejaria. Segundo ele, a universidade terá mais R$ 20 milhões esse ano.

 

Em 2009, a busca por novos talentos na AmBev fez a companhia selecionar um número recorde de 60 trainees e ir à caça de estudantes brasileiros nas melhores universidades dos EUA. Na da Pensilvânia, conseguiu reunir cerca de 50 alunos para apresentar a empresa. O convite para a palestra chegou por e-mail: "Atenção estudantes brasileiros, AmBev está na Universidade à procura de estagiário".

 

O carioca Marcelo Mansur, que cursa engenharia química na universidade, não fazia planos de voltar ao Brasil, mas foi seduzido. "Quando você vai procurar trabalho aqui parece que o empregador está te fazendo um favor. A AmBev, ao contrário, estava nos convidando."

 

De encontros como esse, a empresa selecionou sete alunos para um estágio de verão, entre eles Mansur. Todos acabaram contratados depois da temporada de três meses no Brasil e assumem seus postos até o fim do ano, assim que concluírem a graduação.

 

Com 7 mil funcionários no Brasil e 574 vagas abertas no mercado, a Accenture, consultoria multinacional em serviços de tecnologia e gestão, já estuda a possibilidade de trazer profissionais de sua unidade espanhola para atuarem no País.

 

O principal executivo da área de gestão de talentos da companhia, Rodolfo Eschenbach Júnior, começou a separar nos últimos três meses currículos de brasileiros que estão fora do Brasil, dispostos a voltar. "Fomos pegos de surpresa. Não chegamos a sofrer tanto com a crise, mas também ninguém esperava essa aceleração", disse.

 

A necessidade de profissionais prontos fez o Estaleiro Atlântico Sul (EAS), em Pernambuco, buscar soldadores no Japão. Desde dezembro, a empresa tenta contratar 200 dekasseguis para poder atender a tempo as encomendas da Transpetro e da Petrobrás.

 

A falta de mão de obra qualificada abalou até a sólida política de formação de profissionais da construtora Odebrecht, que tradicionalmente alimenta os cargos de gerência com colaboradores que começaram na empresa ainda como estagiários. "A estratégia única de formar em casa já não atendeu a demanda, tivemos de contratar recursos mais maduros e agilizar a aculturação", afirmou Antônio Rezende, responsável por Pessoas e Desenvolvimento, funcionário da construtora há três décadas.

 

Entre 2007 e 2009, 1.097 profissionais foram trazidos da concorrência. Para "aculturá-los", a companhia desenvolveu um curso específico com duração de seis meses, que prevê sessões individuais com programas interativos de leitura e compreensão de textos.

 

Para ampliar o quadro de futuros executivos, a Odebrecht fará mudanças no programa de estágio deste ano. A empresa quer contratar estudantes no período de férias, com a intenção de levá-los para obras no interior e em outros Estados.

 

"A questão fundamental para o engenheiro é a prática e é isso que precisamos proporcionar", disse Rezende.

 

Por que faltam engenheiros no País?

 

Empresas dos mais variados setores da economia estão sofrendo na carne com a falta de profissionais de engenharia - resultado de décadas de estagnação da economia, em que grandes obras de infraestrutura eram coisa rara.

 

Foi um período em que os engenheiros migraram para outras áreas, principalmente para o mercado financeiro, e a procura pelo curso nas universidades caiu. "Agora essa é a profissão do futuro", diz o professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), José Roberto Cardoso.

 

"Perdemos quase 80% dos alunos porque a graduação é difícil e eles não têm formação adequada no ensino médio para enfrentar as disciplinas tecnológicas."

 

Cardoso acredita que, se pelo menos metade dos estudantes conseguissem chegar até o fim, o número de engenheiros no mercado triplicaria em pouco tempo.

 

Na USP e no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) os engenheiros recém formados saem com pelo menos duas ofertas de emprego ao fim do curso.

 

'Situação revela como a educação ficou em segundo plano no Brasil'

Entrevista com Márcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

 

- Como o senhor vê a mobilização das grandes empresas para resolver o problema da falta de mão de obra qualificada?

 

A capacitação de funcionários, internamente, já era uma prática usada em outros países. Com a abertura da economia, essas práticas começaram a ser vistas aqui no país, só que naquela época não houve um grande apelo, porque a realidade era de baixo dinamismo econômico e alto desemprego. Agora, essas iniciativas ganham força porque há uma pressão maior por trabalhadores e sinais de escassez de mão de obra. O que temos visto é que as companhias têm preferido melhorar o perfil da educação interna a ter de buscar profissionais fora do país. Importante lembrar que as grandes empresas representam 2% dos estabelecimentos e respondem por um terço total da ocupação.

 

- Isso não torna explícita uma deficiência no sistema educacional brasileiro?

 

Não dá para justificar o caminho adotado por elas, com eventuais falhas no ensino. O que estamos vendo aqui é algo que já existe em países desenvolvidos, com níveis educacionais altíssimos. O que está em curso é a atuação de grandes empresas, em diferentes países, e que precisam formar trabalhadores que possam atuar em locais dos mais variados. Como se trata de uma formação específica e necessária para a companhia é algo que ela vai fazer mesmo em países avançados.

 

- E como ficam as pequenas e médias empresas que não têm recursos para adotar soluções como essas?

 

Nesse caso, elas dependem quase que exclusivamente da formação pública ou privada. Por isso, não tenho dúvida de que o sistema público brasileiro de emprego precisa ser reformulado. É preciso combinar benefício monetário com formação. As pequenas e micro empresas também não estão preparadas para selecionar os próprios trabalhadores. Elas precisam de uma intermediação. Essas necessidades exigem um programa e um planejamento nacional a médio e longo prazo.

 

- A última pesquisa do Ipea sobre oferta e demanda de mão obra mostra que o País terá esse ano "um saldo" de trabalhadores qualificados, num momento em que vemos alguns setores desesperados atrás de profissionais especializados. Como explicar os números?

 

Estamos num país de grande proporção. Frente a esse quadro de crescimento econômico, temos uma oferta de mão de obra qualificada que não está localizada onde o emprego está sendo gerado. Em algumas localidades vai sobrar trabalhadores e em outras vai faltar. A situação que enfrentamos agora revela como a educação ficou em segundo plano no Brasil. Por isso, defendo que esteja entre as prioridades do País um PAC da capacitação, como já temos para a infraestrutura.

 

(Jornal da Ciência)


Data: 05/04/2010