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Artigo - Uma simples e definitiva curiosidade - Parte 1

Wagner Braga Batista

 

Quando se aproximou dos amigos, foi recebido com emoção. Saudações efusivas e fortes abraços, comprovaram que a velha amizade não se desfizera à distância.

 

Esta estória, começara muitos anos atrás.

 

Compelido pela busca de emprego, Egberto fora para a cidade grande. Lá, conseguira se formar, casara-se, tivera seus filhos e se notabilizara como exímio pesquisador. Destacara-se em sua área de conhecimento e ganhara projeção. Não apenas na cidade grande, mas em todo mundo. Pesquisador emérito e diligente ativista político, fora reconhecido por seu brilhantismo intelectual e por suas convicções socialistas. Lecionara em inúmeras universidades estrangeiras, recebera comendas e vários títulos honoríficos, Tinha livros publicados em 22 idiomas. Dera assistência aos melhores institutos de pesquisa e a vários chefes de Estado Sem sombra de dúvida era um cientista de renome internacional.

 

Este notável desempenho o convertera em filho ilustre da cidade natal. Uma pequena cidade, como tantas outras, que parecia parada no tempo.

 

À distancia, seus conterrâneos acompanhavam a trajetória deste homem. Todos se regozijavam de te-lo conhecido.

 

Conhecido mesmo, pessoalmente, desde menino mijão. Afirmavam os mais antigos. Os mais novos, apenas, cultuavam sua imagem.

 

Para aquela gente humilde, Egberto era um ícone. Sinalizava um desempenho, que suas condições de vida jamais lhes permitiriam ter. Deslumbrados, viviam a se perguntar.  Como fora possível um habitante daquele fim de mundo adquirir tanto conhecimento, tanto reconhecimento e tanta projeção.

 

Porém, a vida dá muitas voltas.

 

Certo dia, subitamente, Egberto tomou uma decisão. Vou parar. Movido por sentimento telúrico, resolvera voltar para casa. Não sua atual moradia, mas para seu berço natal.

 

Para mantê-lo ativo, prestaram-lhes todas as honrarias possíveis e imagináveis. Gentilmente recusou. Ofereceram-lhe mundos e fundos. Importava-se com os mundos, mas rejeitava, veementemente, toda sorte de  fundos. Declinou da oferenda. Estava decidido iria se aposentar.

 

Pois  bem, aposentado, Egberto estava de volta. Entregue às mesmas rotinas que preenchem o dia a dia das pequenas cidades.

 

Religiosamente, toda a manhã, às 7 h, saia de casa e se dirigia à praça central. Respeitoso, cumprimentava os transeuntes, afagava os mais novos e se detinha para ouvir conselhos dos mais idosos. Afinal, não se sentia como um deles, apesar de levar milho para os pombos e cultivar sentimentos típicos de pessoas amadurecidas. Graças a eles, era um otimista incorrigível. Via boas intenções em todos os homens, virtudes em todos os atos e grandeza nas coisas mais comezinhas.

 

Não possuía auto-estima, posto que sua imensa generosidade era incompatível com qualquer sentimento egocêntrico. Sabia que a vaidade é a virtude dos tolos. Como todo bom pesquisador, descobrira com Galileo que a vocação da ciência era contribuir não para seu engrandecimento pessoal, mas para a liberdade de todos os homens.

 

Perguntavam-lhe: Como?

 

Respondia de pronto:

 

A Física não deveria se prestar para dobrar o joelho dos homens, mas para sempre coloca-los de pé.

O conhecimento deve estar a serviço dos homens para superar suas dúvidas, eliminar suas angústias e carências  mais elementares.

 

Sentenciava:

 

Seja onde for, na Conchinchina ou nesta minha pequena cidade natal .

 

Dizia também que o papel da ciência não é proporcionar prazeres para uma minoria, mas satisfazer necessidades e causar felicidade a todos os homens. Acrescentava:

 

 A ciência está profundamente enraizadas em coisas simples. Simples, mas com grandes dimensões.

 

Por isto, Egberto se dedicava a elas, com atos de solicitude e de desprendimento.. De atenção à natureza. Com apreço a gente e bichos. Com dedicação a todas as coisas ao seu redor, naquele minúsculo e incomensurável universo de sua cidade natal.

 

Seus amigos, estranhavam suas atitudes. Acostumados a assistir à selvageria televisada e à protagonizada pelos próprios vizinhos, ficavam surpresos com tamanho carinho e atenção com pessoas simples. Com sua diligência e seus préstimos.

 

Inicialmente, imaginaram que quisesse se candidatar a prefeito. Era óbvio que não queria. Supuseram alguma outra ambição menor. Mas também perceberam que aquela alma boa não possuía ambições. Nem maiores, nem menores.

 

Desinibidos e timidamente passaram a externar sua estranheza. Com o passar do tempo sua estupefação. Certo dia, incontidos, perguntaram-lhe se sentia feliz naquele ambiente constrito e sem grandes horizontes.

- Mas é claro, companheiros! Respondeu amavelmente.

 

Olhares atônitos deixaram transparecer estranheza.

 

- Felicíssimo! Acrescentou.

 

 Ao se retirar, tornou-se objeto de novas e permanentes dúvidas. Como pode se sentir feliz? Indagavam-se os amigos.

 

Não passou muito tempo e novamente Egberto foi interpelado.

 

-Amigo, talvez você não nos queira magoar. Afinal somos filhos da terra, criados neste ambiente miúdo. Você está vindo de uma outra realidade. Outra cultura. Outras oportunidades. O que te faz feliz nesta cidade sem horizontes.

 

Sem hesitar, respondeu:

 

- A curiosidade.

 

Fez-se o tão afamado sepulcral silencio. Aí mesmo é que ninguém entendeu mais nada. Egberto chamou os amigos pra tomar o habitual café na bodega do Ermírio e só assim a conversa foi retomada.

 

Porém os amigos não ficaram satisfeitos. Aquela afirmação tão peremptória era uma insofismável verdade, porém não se davam por satisfeitos.

 

Para não incomodar Egberto, trocavam opiniões entre si.

 

-Que danada de curiosidade era esta que tornava feliz e preenchia a vida deste homem.

 

Afinal todo mundo que se aposentava se sentia acabrunhado, vinha a angústia. Alguns preferiam ficar em casa sentados numa cadeira amassando bosta. Sair à rua, tornava-se um ato vergonhoso, como se estivessem expondo uma possível inaptidão para vida.. Outros, freneticamente, procuravam o que fazer. Ganhar dinheiro.

 

Viajar. Morar com os filhos. Qualquer coisa que ocupasse o seu vazio interior. Este não era o caso de Egberto. Estava sempre animado e disposto para viver a vida.

 

Pois é, curioso, Egberto se sentia feliz submetendo-se à mesma rotina.

 

Era uma alma boa, que não acreditava em almas. Que não precisava seguir a risca o aforismo de Mario Quintana: “A alma é essa coisa que nos pergunta se a alma existe." Suas atitudes frente à vida dignificavam a si e estas supostas almas desencontradas..Portanto, era uma almas que não precisavam pedir licença pra entrar paraíso.

 

Coerente com suas convicções, penetrava aos poucos, serenamente, no reino da autonomia. Depois de tantos anos de pesquisas e de lutas, dar-se-ia ao luxo de refletir sobre sua vida. De ler o que quisesse, de pensar com liberdade e alimentar os sentimentos mais simples e sinceros para com seus conterrâneos. Para uns, isto era muito pouco, para ele tinha dimensões incomensuráveis em sua vida. Seus valores, eram outros, não tinha ambições e levava uma vida austera. Gostava apenas de se sentir feliz. E por deferência do destino, continuar sendo curioso.

 

 Passaram-se muitos anos. Amigos foram embora pra sempre. Jovens se integraram ao circulo de idosos. Os pombos se reproduziram e infestaram a praça.

 

Egberto, apesar da idade, sentia-se jovial e eternamente curioso.

 

O ritmo da cidade pequena mudara. Inúmeros automóveis, barulho intenso de vendedores ambulantes e novos gatunos ganhavam visibilidade naquele minúsculo pedaço de mundo. Era amigo de todos, menos daqueles de colarinho branco. Destes guardava discreta distância. Detinha-se. Também, para falar com os menores de rua. Agora não só levava milho para os pombos, como também leite para estas crianças.

 

Atencioso, ouvia suas lamurias e desconsolo frente ao abandono dos pais e da sociedade. Mantinha-se esperançoso: Meus filhos isto tudo um dia irá mudar.

 

Naturalmente dava demonstrações de admiração. Ora com um novo cartaz, ora com outra arvore subtraída da paisagem urbana. Até mesmo a aridez da praça, supostamente revitalizada pelo planejamento urbano, causava-lhe admiração.

 

Insisto em dizer, contrariando a realidade, era um resoluto otimista.

 

No entanto, a vida é inclemente. Aos poucos foi deixando Egberto sozinho. Seus país e irmãos não existiam mais.  Seus filhos foram para a Europa e seus netos talvez estivessem na lua. Por fim sua inseparável companheira de tantos anos também lhe deixou.

 

Talvez, já não houvesse mais tempo. Não houvesse mais ninguém. Mas havia ainda muita gente e não seria isto que tornaria Egberto infeliz.  Lá estavam tantos viventes que identificara ao longo de sua vida. Com os quais aprendera novas linguagens e sentimentos. Com os quais furtivamente dialogava. Assim como sempre fizera com seus amigos, falava com plantas, trocava opinião com cachorros e se nutria do carinho que lhes dispensavam seus amigos pássaros. Constrangia-se com o destino das desafortunadas galinhas. Apesar do enorme apreço pela vida e não sentia nenhuma apreensão frente a morte. Agnóstico, reconhecia nela apenas um novo caminho. Portanto, despertava-lhe também curiosidade.

 

Egberto dizia que não queria virar semente. Por isto, procurou seu amigo, Carlos Tejo, um médico prosador com o qual se entretinha em longas e intermináveis prosódias. Após a consulta, fez os exames de praxe e tranqüilo retornou ao seu consultório. Percebeu de imediato que alguma coisa diferente tinha ocorrido. Com semblante crispado, o médico, seu amigo, hesitava. Fazia rodeios e não dizia coisa com coisa. Como de costume, ficou curioso.

 

Por fim, uma lágrima nos olhos do médico, denunciou sentimento incomum. Ciente da gravidade da doença de seu velho amigo, Carlos Tejo confidenciou.

 

Egberto, você agora precisa se tratar. Você está com uma doença muito grave e letal. Você está se sentindo bem?

 

Naturalmente, respondeu que sim.

 

Mas como? Replicou o médico:

 

Contundente, Egberto complementou:

 

Feliz..

 

Estarrecido, insistiu o médico.

 

Mas, feliz, como? É uma doença letal.

 

Serenamente, Egberto concluiu:

 

Meu velho, vou satisfazer minha definitiva curiosidade. Vou saber se esse tal de divino existe.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 04/05/2010