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Artigo - Por causa das melancias...

Wagner Braga Batista

 

 

Ele não tinha crenças, nem convicções.

 

Orgulhava-se disto. Não porque fosse cético. Na verdade desdenhava a tudo e a todos.

Como ele próprio dizia:”Não tenho nenhum apreço pela raça humana”. Amigos, nem pensar. Tornara-se celibatário, não por opção, por rejeição. Pelo mais absoluto desprezo que lhes dispensavam as mulheres. Que eram, por sua vez, alvos preferidos de seu desdém e de sua ira: São lascivas. Não prestam, constituem uma sub-raça.

 

Sua única certeza é que era tido como boçal. Porém, um boçal esclarecido. Destes que lêem jornais, sabem o nome de todos países e respectivos presidentes. De todos acidentes geográficos, rios e capitais. Vangloriava-se de ter decorado livros de História e especificações técnicas de navios. Sabia também vários idiomas. Era imbecil em todos eles (Moniz Sodré).

 

Passados 40 anos de tediosa existência, resolvera se tornar adepto de alguma coisa. De alguma crença. Não podia ser política, nem tampouco religiosa. Tinha que ser adesão a uma coisa ou crença que não implicasse em exigências de espécie alguma. Principalmente de natureza moral. Portanto tornou-se adepto de melancias.

 

Em princípio ia ao mercado. Para contemplá-las. Ficava longo tempo olhando melancias. Escolhia as mais robustas, transportava-as para casa. Enquanto não apodreciam, eram seu objeto de culto. Aos seus olhos, fulguravam como alvos de intensa admiração.

 

Por quê? Não se sabe.

 

Elegera as melancias como objetos de admiração e desejo. Não comia melancias, de vez em quando masturbava-se com elas.

 

Depois atinou que poderia semeá-las. Resolveu plantá-las no quintal do fundo de sua casa.

Autodidata, estudou botânica, agronomia e eugenia. Entendia que melancias, assim como a raça humana,deviam ser submetidas a parâmetros de qualidade, classificadas e depuradas.

 

Com desvelo passava horas identificando detalhes considerados críticos, falando sozinho, como se as melancias auscultassem suas angústias. Nominava cada uma delas. Instituiu um selo de qualidade e rituais de reconhecimento, celebrados com inegável pompa e formalidade. Nesta ocasião, selecionava e premiava as melhores, segundo seus padrões racialistas.

 

Os vizinhos, inicialmente, estranharam. Com o passar do tempo entenderam que estava dando vazão a sua loucura.

 

Enfim, esta era sua rotina.

 

Ao acordar, sua primeira iniciativa, era ver as melancias. Verificar se estavam bem, se cresciam, se não havia pragas, ou quiçá se vizinhos invejosos não haviam teriam mijado em alguma delas.

 

A sua fixação tornou-se obsessão. Via atributos, que julgava faltar em seres humanos, em suas virtuosas melancias. Não em melancias quaisquer, mas nas suas melancias. Qualificadas com o nome de homens ilustres e renomados. Expressões de suas virtudes.

 

- Gobineau é tão reluzente

- Robert Nox tão rechonchudo.

- Norton, quem diria, amadureceu.

 

Tornou-se um militante da causa das melancias. Insistente, procurava convencer a todos da sua importância. Escrevia cartas para colunas de revistas e jornais. Seu propósito era sensibilizar leitores para a terrível situação das melancias. Arrancadas, estocadas, transportadas e consumidas sem nenhum apreço . Interpelava defensores de direitos humanos, acusando-os de falsários, uma vez que jamais se pronunciaram em prol das melancias. Fazia plantão no gabinete do prefeito. Atormentava secretários municipais. Insistia com o pároco: queria uma pregação em prol das melancias. Dirigia-se a grupos de mães e clubes de serviços para chamar atenção para este drama social. Ardoroso defendia uma política pública que assegurasse o direito social das melancias. Clamava pela Bolsa Melancia. Zeloso para que nada lhes faltasse em idade provecta ou na hora de serem comidas.

 

Com o passar dos anos, tornou-se insuportável. No seu isolamento, continuava adepto das melancias. Porém percebera que sua inglória causa não tinha futuro. Precisava adicionar novos ingredientes à luta pelas melancias. Nesse afã debruçou-se sobre alfarrábios. Por fim entendeu que o caminho era simples, bastava se guiar pelas cores da melancia.

 

Por coerência, estabeleceu correlação de seus novos móveis com as cores da melancia. Inicialmente, tornou-se um elitista torcedor do Fluminense.

 

Essa súbita escalada, provocou um turbilhão em sua vida. Mobilizado emocionalmente, percebeu que poderia ir mais fundo. Uma profundidade idílica capaz, de nos estertores da vida, despertar uma definitiva paixão.

 

Havia o vermelho, havia o verde. Havia conjugado harmoniosamente estas referencias na escolha precedentes. Agora teria que ser uma ou outra. Separar o joio do trigo.

 

O vermelho apontava para a pujança libertária de anarquistas ou, quiçá, comunistas. Avesso ao humanismo, era, igualmente, ao contrário ao socialismo. Conservador e reacionário, não poderia incorporar tais idéias. Rejeitava estas orientações com o mesmo fervor e boçalidade com que recitava poetas gongóricos.

 

Então, o verde talvez fosse mais sugestivo. Verde remetia a causas ambientais, à causa das melancias. Certamente melhor se coadunaria com seu lema: eternarmente a favor das melancias.

Portanto, identificou-se com o verde. Não com o partido verde, demais progressista para seu gosto. Verde que flamejava na bandeira pátria e reluzia nas penas de galináceos. Isto mesmo, nas penas de galinhas, em tese, devoradoras de melancias.

 

Orgulhoso, estava dando um novo e retrogrado rumo a sua existência. No fim de vida, adquirira uma primeira, última, extemporânea e inconsequente convicção:

 

Tornara-se fascista, um galinha verde.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 26/05/2010