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Artigo - A vitória do Fluminense e a dialética das aflições num bar de Belo Horizonte

Wagner Braga Batista

 

 

Era o dia 26 de maio de 2010. Nem um dia a mais, nem a menos na História.

 

Não tinha onde ir. Esquadrinhei todos recantos da cidade. Como um peregrino medieval, corri lugares sacros e profanos, renunciei a todos prazeres para ter um só: ver o Fluminense jogar. Perguntei a todos taxistas, motoristas, meninos de rua e cidadãos de BH. Onde poderia ver o Fluminense jogar.

 

Havia duas alternativas me evadir do mundo ou ver o Fluminense jogar. Persegui a segunda. Fui a todos os bares. Perguntei pelo jogo, só havia uma cosmovisão reinante: o Galo. Assim como o Treze, de Campina Grande, o Atlético Mineiro reinava soberano por todos os bares e televisões da face da terra. Só havia um lugar, um último e recôndito esconderijo onde se abrigavam os humildes. Aqueles que queriam assistir ao FlaxFlu.

 

Uma grande questão se instalara na cabeça de todos humildes: Onde ver o FlaxFlu?

 

Eis que de repente, saída da noite de todos os tempos, a voz tumular do profeta me acode e me diz:

Vá.

 

Era o profeta me convocando para enfrentar minha sina.

 

Para onde? Indaguei.

 

Imperativo, sentenciou:

Irás para lá.

 

Lá, onde? Perguntei.

 

Lá onde moram todas agruras e certezas. Onde residem todas as aflições.

 

Não duvidei do profeta, mas mais uma vez perguntei:

Onde ?

 

Com generosidade, o profeta respondeu:

Só há um único  lugar onde moram todas as aflições. Um único e intransponível lugar na face da terra. Lá onde estão entocados todos os urubus: a torcida do Flamengo. Estão todos lá, no reduto dos urubus em BH. Vá, se lá chegares, verás o Fluminense vencer o Flamengo.

 

Diante da infalibilidade do profeta e de tão enfático vaticínio, não poderia ignorar este enorme  desafio, nem tampouco me furtar ao meu próprio destino.

 

Valeria a pena a imolação ? Seriam verdadeiras as palavras do profeta?

 

Escalei íngremes escarpas, atravessei áridos desertos ideológicos, transpus profundos abismos que separam pobres dos ricos, suplantei os muros do preconceitos e da discriminação racial. Ia pelos vales do silencio, a cada passo, cidadãos de BH pouco diziam. Sinalizavam apenas: é logo ali. Como um guerrilheiro alado, vencia o tempo e superava cem mil divisões de um exército invisível que não queria me deixar chegar. Rompi blindagens de presidenciáveis e de inimputáveis corruptos. Resoluto, como um driblador nato, cortei barreiras impostas pelas placas de ruas, pelas mentiras e maquiagens. Acreditei piamente nas palavras do profeta. O Fluminense iria vencer.

 

Prestes a chegar, apoderei-me da mais absoluta convicção de que os profetas não erram. Os rádios e todas as Tvs do mundo interromperam suas transmissões. Solenemente antecipavam a  vitória. Anunciavam e celebravam a definitiva glória tricolor aos dez minutos do primeiro tempo do jogo. À hora em que cegos viram e toda surdez foi ignorada para ouvir o grito de gol. O Flu se antecipava ao meu destino e marcava o primeiro gol.

 

Desesperado e célere, corria pelas ruas num inabalável transe de vitória.

 

Na hora H, lá estava munido com a palavra do profeta, para fazer valer seu vaticínio.

 

Lá chegando, em presença de todos, eu era um só e somente um só. Vivendo a antiga, irredutível e desconfortável solidão em meio a tantos adversários. Estes eram milhões, portavam estandartes e hinos de glória. Todos uniformes. Todos vestidos de rubro negro. Pai e tantos filhos. Assim como o Flu e o Fla. Condenados igualmente ao mesmo destino adverso: a glória tricolor.

 

O recanto dos urubus, continuará lá, para sempre, na rua Prudente de Morais, na Cidade Jardim, em BH. Mas, nunca mais esquecerá esta vitória. Carregará para sempre a indelével marca desta vitória, realizada em presença de um, apenas um tricolor.

 

Como um estranho que ingressa em terras inóspitas, pedi licença para entrar. Tricolor confesso, não poderia declinar de minha paixão e meus ardores. Surpreendentemente, como um pai pródigo, que volta para abraçar seus filhos, tive educada e boa aconhida. Fraternal como nos velhos e imemoriais tempos em que as torcidas se confraternizavam nas arquibancadas do Maracanã.

 

Porém a acolhida não foi incondicional. Urdiram: não pode rir, nem chorar. Nem torcer, nem se contorcer com as dores e glorias de vencidos ou vencedores. Tampouco poderás gemer, se acaso houver o infortúnio. Aceitei de pronto todas condições impostas, porque acreditava na palavra do profeta.

 

Meus amigos, dei-me conta do que é a impotência do individuo frente ao glorioso destino histórico. Dei-me conta da importância e da urgência da capitulação frente ao destino histórico. Da necessidade de aceitar o silencioso pacto, que paradoxalmente levaria à glória. O que é o sofrimento imposto diante da iminência da glória. Premido fiquei, condenado ao silencio e à imobilidade irrestrita, como se dentro de mim soasse a advertência: sem gemer, mesmo diante do infortúnio. Foi assim, durante setenta minutos restantes, até o final o jogo. Foi assim o silencioso grito.

 

Pensei cá comigo. Por que torcer se estávamos fadados a um mesmo destino. Teria que ser respeitoso. De qualquer modo, o Fluminense já marcara o primeiro gol e continuávamos a coexistir sob a mesma sina. Tricolores e flamenguistas, testemunhas oculares daquela vitória. Eu, apenas eu, tricolor, e milhões de rubro-negros contaminados por esta desavergonhada paixão pululante que revolvia a tessitura do mundo e cervejas espalhadas em mesas de bares sobre toda a face da terra.

 

Amigos, vou lhes dizer: Não é fácil vencer o Flamengo.

 

Se perguntassem a qualquer general romano, ao Clawsevitz, quem seria o vencedor desse prélio. Não hesitariam em responder: o Flamengo. Se indagassem ao invencível General Giap, quem preferia enfrentar: o poderoso exercito norteamericano ou o time do Flamengo. De pronto falaria: o primeiro inimigo, posto que que já o venci muitas vezes, mas jamais venceria o Flamengo.

 

Acrescentaria:

Os Estados Unidos da América não tem a estatura de um Flamengo. De nenhum Flamengo, mesmo do menor Flamengo, de um minusculo peladeiro de rua ou de um time de párocos de igreja.

 

Amigos, não é fácil vencer o Flamengo. Mas o Fluminense é maior do que o Flamengo. Difícil para nós, não é vencer o Flamengo. É convencer que nós vencemos o Flamengo, dada a crença  inabalável da torcida do Flamengo.

 

Difícil é convencê-los de qualquer derrota, no futebol ou até mesmo no mais elementar jogo de bola de gude. Mas apesar desta suprema e inabalável certeza, houve a derrota. A TV mostrara ao vivo e a cores. Em tempo real. O profeta em todo seu explendor, fora luz e verdade.

 

Fluminense vencera por 2X1. Mas, todos os urubus mantinham-se irredutíveis. Contrariando a mais contundente evidencia, a voz do profeta e todos seus vaticínios, o fim da partida e o resultado final estampado em todos os olhos e bocas, negavam o seu destino. Apesar de dizer-lhes que, eu e todas as cabras vadias rodrigueanas, testemunhamos a brilhante vitória tricolor. Peremptoriamente, negavam sua História.

 

Irredutíveis, insistiam. Fechavam os olhos, aos montes, tornavam-se céticos e já não acreditavam sequer no fim do mundo. E assim se consumou a profecia: Vá e veja a vitória do teu tricolor.

 

Fui.

 

Amistosamente milhões e milhões de flamenguistas, avessos a todos vaticínios e portadores de tantas aflições, despediram-se de mim.

 

Hoje, como nos velhos tempos, apesar de incrédulos ainda afirmam que ganharam o jogo que nos vencemos.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 28/05/2010