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Artigo - A pátria de chuteiras e os milhões de cegos descalços

Wagner Braga batista

 

Salvo engano, se não foi formulada por Ruy Castro,  seu biógrafo, esta implícita conclamação é obra de um professo e desmesurado reacionário. Um irônico e contundente dramaturgo, que colocava o Fluminense acima de suas próprias loucuras.

 

Um comentarista do tempo em que havia clubes de futebol ao invés de logomarcas. Daí, a nossa absurda empatia com Nelson Rodrigues.

 

Nelson Rodrigues é reconhecido como um cronista barroco, um comentarista que literalmente nada enxergava, mas via as forças sobrenaturais que atuavam sobre o futebol. Portanto, suas crônicas e desvarios, são premonitórios.

 

Nelson Rodrigues tinha sérias deficiências de visão, mas conseguia perceber aquilo que os homens de visão se negavam a ver. Como um tribuno de terrenos baldios, alertava para evidencias gritantes, para o óbvio que cegava nossos olhos.

 

Antecipou-se aos teóricos do sentido oculto e das palavras verdadeiras que distorcem e ocultam verdades. Ao mesmo tempo em que acusava de mentiroso o vídeo tape, apontava os ardis que sem escondem em todas insofismáveis verdades. As verdades que nos incitam a celebrações e paradoxalmente nos celebram, como se fossemos objetos delas.

 

Uma delas: a pátria de chuteiras.

 

Muitas coisas vêm à cabeça quando ouvimos falar em pátria de chuteiras.

 

Por meio desta sutil convocação, somos chamados à ignorância. À busca do Santo Gral.

 

Diversamente dos malabarismos racionais e sentimentais que o futebol proporciona, somos levados a crer que,  sem envergar as chuteiras, seremos vistos e apontados nas ruas como os eternos apátridas. Não só os que pensam e timidamente opinam. Todos, sem exceção.

 

Nesta ignomínia cabem todos aqueles que não envergam chuteiras. Mesmo aqueles que usam as sandálias da humildade, não podem se furtar a este dever cívico, posto que também são conclamados às chuteiras. Mesmo a imprensa chamada livre, mas que se mostra servil e submissa. Que aceita toda sorte de restrições e de imposições de M’Dunga e de Ricardo CBF de Teixeira. Principalmente a imprensa livre do povo e refém de patrocinadores não pode descalçar as chuteiras.

 

Deste compromisso, também não estão desobrigados milhões de cegos privados da falta de razão e de sentidos. Não podem se omitir valendo-se da própria cegueira.Não estão isentos desta responsabilidade histórica nem mesmo os pobres, os miseráveis, os desempregados e os inempregáveis. Serão perenemente condenados pelo seu fracasso, pela sua pobreza e por seu descaso. Por não terem exercido o primordial direito de comprar chuteiras. Isto porquê, se até os descamisados, vestiram chuteiras, apenas os inúteis e fracassados declinaram deste dever para com as chuteiras. Para com a pátria da qual se ufanam milhares de tubérculosos, aidéticos, indigentes e alienados. Milhões de crianças com fome, abandonadas e mergulhadas no crack que se contraem de dores e de frio em nome da pátria. Centenas de frenéticos e alucinados, que deliram em êxtase,  patinam nas neves de Bariloche, usufruem do sol Caribe, Bordejam pelo Mediterrâneo, singram pelos mares do Sul, gozam do exotismo asiático, mas para não faltar a esse compromisso, subitamente irrompem em Soweto, torcendo delirantemente pelo Brasil, pela Nike ou qualquer outra marca. Todos se igualam no dever à pátria.

 

A pátria que luzia nas chuteiras de Roberto Carlos, o herói do meião esgarçado. Aquele que em partida decisiva da Copa de 2006, num ato de patriotismo, foi ajeitar o meião para não ocultar o brilho das chuteiras da pátria, justo na hora do gol do adversário.

 

Estes tantos atletas que não medem sacrifícios pela sua aparência e querem ostentar as  fulgurantes chuteiras da pátria. Chuteiras púrpuras, azuis, furta-cor e amarelas. Chuteiras com brincos e vuvuzelas. Chuteiras com saltos altos, com implantes de cabelos, eticamente responsáveis e dotadas de tantas virtudes que nos põem pelas guelas.

 

Estes são os heróis do plutomarketing. Estes que carregam nos bolsos sonhos vendidos, produtos vencidos, um manual para enfrentar as tristezas e a tabela da Copa. Pouco sabem da vida, dos mistérios da Copa, mas sabem que no horário marcado, a aprazível certeza tomara conta de suas indecisões e fraquezas. Por isto, sabem de cor toda a tabela da Copa. Sabem que às treze horas de ontem, o marketing do comércio justo eliminara os pobres da face da terra. Que hoje já jogaram, em nome da paz, os discriminados norteafricanos contra os segregados da Australia do sul. Que às quinze horas, ainda hoje, jogaremos contra nós mesmos, o Brasil contra a esperança prostituída do governo Lula. Que amanhã, às cinco horas da tarde, a Alemanha enfrentará uma logomarca.  A seguir, os empresários socialmente responsáveis jogarão contra trabalhadores verdadeiramente alienáveis. Na fase final, as regras do jogo dependerão democraticamente de um acordo entre os patrocinadores

 

Assim, vamos torcendo pelo time das chuteiras da Nike, dos prepotentes donos do marketing esportivo e da imbecilidade da CBF.

 

Foi aí, que Damião do Pedregal, chegou aquela dolorosa constatação. Contrariando as imagens da TV, percebia que o povo já não estava em Soweto, nem no som das vuvuzelas. Que seu time não jogava pra frente, nem pra trás. Jogava para si mesmo.

 

Não tinha élan e nem gozava de crédito. Subsistia por meio de palavras vendidas e palavras trocadas. Era o time de lustrosas das chuteiras da pátria, dos livros de autoajuda, mas que não tinha memória. Talvez por isto, naquela entrevista, aquele arrogante jogador arrogante depreciasse os palhaços.  Desconhecesse  as virtudes e as fantasias de tantos palhaços sem brincos, patrocinadores e logomarcas: Garrincha, Fio Maravilha, Dadá Aelicopetro, Cafuringa, entre tantos outros.

 

Criaturas de um país encantado, que faziam do futebol  um esporte de homens de pés descalços,de simples  deleite e de paixões desinteressadas.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 14/06/2010