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Artigo - A Copa do i-mundo...saudade de Mario Vianna, com dois enes

Wagner Braga Batista

 

 

Depois do I-pod e do i-pad, a Copa nos brinda com um novo artefato, habilmente projetado para semear a ilusão de imparcialidade e enganar o mundo: o i-mundo, o árbitro de futebol porcalhão.

 

Diante deste novo artefato, lembrei-me  de Mário Vianna, precursor dos comentaristas de arbitragens. De seu bordão: sou Mario Vianna, com dois enes.  

 

Mario Viannna, com dois enes, trazia em seu próprio nome a duplicidade dos árbitros: praticantes do ilícito e  críticos da ilegitimidade.

 

Antes de se tornar árbitro de futebol,  tinha sido da Polícia do Exército- PE, do Rio de Janeiro. Uma escola que transformava jovens ingênuos, provenientes de estados do sul do país, chamados, então, de catarinas, em brutamontes brutalizados. Depois, nos anos 70, sediou a repressão política e a tortura do Doi-Codi.

 

Mario Vianna, com dois enes, era um misto de Kojac e Arrelia. Truculento e engraçado.  Celebrizara-se nos campos de futebol pelas afrontas e pela ousadia no enfrentamento das torcidas, numa época em que as cabines de rádio ficavam a meio palmo do cheiro e das angústias de torcedores nas arquibancadas. Graças à proximidade das cabines, torcedores viam-se como locutores de rádio. Assim, rolava o bate boca e confrontos tornavam-se inevitáveis.  Freqüentemente, ocorria a troca de sopapos entre o inesquecível Mario Vianna, com dois enes, e os locutores das arquibancadas. Aquelas figuras inimagináveis, esguias, verdadeiros malabaristas, que aprenderam, não se sabe como, a escalar ondas de rádio e penetrar nas antenas de televisão. Por meio destas peripécias, invadiam lares, nas tardes de domingos, narrando para todo Brasil seus dramas, frustrações, palavras e gestos impublicáveis. Essas figuras fariam inveja aos atuais pobres coitados, que se fantasiam de imbecis para agraciar a Rede Globo e cultuar o  M’Galvão, da família de M’Dunga.

 

Mario Vianna, com dois enes, era a antítese do corporativismo arbitral. Sem papas na língua, comumente dizia: este não é um árbitro, é um soprador de apito. O truculento Mario Vianna, com dois enes, ignorado autor de outro bordão, apropriado por um faccioso jornalista, ex-integrante do CCC: É uma vergoooooooooonha!

 

Pois bem meus amigos, o que se dizia roubalheira no futebol, hoje, tornar-se-ia um delitozinho menor frente ao que estamos assistindo. Não me refiro aos crimes de colarinho branco ou as falcatruas no sistema financeiro. Falo de futebol. Falo, inicialmente, do crime praticado contra todo o povo brasileiro: a convocação desta seleção da CBF, que se diz brasileira. O seguir, do segundo crime: a atuação dos árbitros na Copa do i-mundo.

 

Causa vergonha.

 

Antigamente a roubalheira era conscienciosa, comedida e, portanto, discreta. Envergonhava-se de si. Pudica, não queria se expor. Não reivindicava espaço na mídia, nem na galeria de fatos deploráveis e honoráveis. Tampouco disputava lauréis , galardões ou titulo de sócia benemérita do clube dos treze. A roubalheira era miúda. Simples e modesta, não pretendia orgulhar-se de si mesma. Não era uma celebridade e parecia dotada de escrúpulos. Mas, também, tinha medo. Temia Mario Vianna, com dois enes.

 

Nas cabines de rádio soava o áulico Mario Viana, com dois enes, o vigilante tribuno dos aflitos e guardião dos enlouquecidos torcedores das arquibancadas.  

 

Aquele que descia o cacete nos desafetos e se tornara o destemido defensor dos oprimidos nas arquibancadas. O intrépido comentarista de árbitros, que tal qual um Zorro solitário, denunciava a roubalheira dos árbitros.

 

Mario Vianna, com dois enes, não está mais entre nós. Não pode discorrer sobre  imponderáveis leis do capitalismo, sobre a mão invisível do mercado ou sobre a mão de Deus. Aquela mão, que por meio da mão de Maradona, deixara os jogadores ingleses atônitos. Descrentes de Deus e das arbitragens. Aquela mão celebrada como vencedora da Copa do Mundo, de 1986, ganha pela Argentina.

 

Mario Vianna, com dois enes, não está mais entre nós para comentar a mão de Luiz Fabiano. Desta feita,  a mão reincidente. Aquela que por indescritível saudade da bola, foi procurá-la e amavelmente tocá-la. Acariciá-la. Não uma única vez. Mas por duas vezes consecutivas, para demonstrar seu inegável apreço pela bola.

 

Aquela cena inacreditável, que eu e bilhões de seres humanos assistimos pela TV. Só um único homem fingiu não ver. Fingiu ignorar. Melhor, aplaudiu, numa inacreditável manifestação de jubilo e reconhecimento pela jogada de Luiz Fabiano, que culminou com o segundo gol contra os marfinenses, o povo branquelo e contrário ao desenvolvimento sustentável, que gosta de comer marfins de unicórnios.

 

Num ato de esmero e galhardia, provou, com equações aritméticas e gestos milimetrados, o improvável. Justificou o injustificável.  Demonstrou que nossos olhos, que tudo viram e festejaram, estavam mentindo para nós mesmos. Para consumar este ato, com indisfarçável sorriso na cara, pediu um autógrafo e passou a mão no peito, parabenizando Luiz Fabiano pela bela matada de bola.

 

Depois, não mais que depois, sussurraria uma confidência ao bandeirinha. Confidencia inacreditável aos ouvidos de Sigmund Freud, do Papa João XXIII e, do mais proficiente dos dois, meu amigo João Otávio. Aquela confidência deixaria perplexos os mais indiferentes e causaria convulsões no homem mais santo da face da terra. Seria mais aterradora  do que os segredos de Beria e mais  contundente que os casos de amor de Elizabeth Taylor. Aquele soprador de apito diria que não anulara aquele gol por uma única razão e um único capricho: sentira-se irremediavelmente fascinado pelos brincos de Luiz Fabiano.

 

Meus amigos, a Copa do i-mundo nada está a dever a este nosso mundo.

 

Depois que o tal de Hecto Baldacci, arbitro da FIFA, que meteu a mão no bolso de bilhões de torcedores do Fluminense, em pleno Maracanã, despontou na Copa do i-mundo, o Brasil não poderia ficar atrás dos argentinos. Para contribuir com o fabuloso projeto do i-mundo, enviamos também nossa moderna tecnologia, encarnada no nosso maior soprador de apito: Carlos Eugenio Simon, aquele que conseguiu surrupiar algumas de nossas maiores torcidas .

 

Saudades do Mario Vianna, com dois enes.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 22/06/2010