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Artigo - Velho Daniel, o verdadeiro guerreiro e grande ausente

Wagner Braga Batista

 

 

Lá estávamos numa interminável polêmica na cantina de dona Dalva. Uma polêmica que transitara das virtudes do futebol brasileiro para a invulgar falta de recursos da seleção da CBF. Uns queriam botar o Ganso, outros, hesitantes, não sabiam se preferiam deixar ou levar o Ganso.

 

A entrada do Ganso tornava-se uma unanimidade, quando uma voz resoluta acudiu aflitos adeptos do Ganso. Lembrou-lhes outra e inesquecível unanimidade. Foi somente, então, que, socorridos por este eminente colega, todos lembraram-se do grande ausente.

 

Aquele que nunca pertencera às seleções de pérolas da vaidade e de brincos de diamantes. Que jamais envergara chuteiras coloridas de pátrias. Nunca utilizaras plissês, laquês ou cabelos ensebados. Além das marcas da vida, não possuía  nenhuma tatuagem em seu currículo.  Não dispunha de sorrisos etiquetados, trejeitos alugados e sonhos envenenados.  Não vendia gestos fraudados, dentes envernizados, línguas soltas e, ao final, lágrimas de olhos encebolados.

 

Talvez, muitos não saibam o que são estas lágrimas. São lágrimas forjadas.

 

Mas afinal quem era o grande ausente? Era Daniel Martins da Cunha, o nosso inesquecível Daniel.

 

Quando pronunciaram seu nome o excelente café de Dona Dalva, cedeu toda sua excelência para dignificá-lo. A velha geladeira ferveu e centenas de panela no fogo gelaram ao ouvir tal menção. Os pratos desceram das prateleiras em júbilo. As portas do sindicato sorriram a alegria cúmplice de quem só sabia sorrir. As cadeiras trepidaram. Os ladrilhos exultaram e as telhas queriam voar. A cantina de Dona Dalva ficou em estado de graça até que a aura Daniel se esvaecesse. Naquele pequeno recinto, todos ficaram de pé para honrar este nome. Trezentos PhDs, naquele pequeno recinto, abdicaram de sua soberba e sabedoria. Declinaram da condição de doutores para se irmanarem na humildade de Daniel.  Mesmo aqueles professores, habitualmente ausentes, resolveram telefonar para a sede do sindicato. Prontificaram-se a fazer um abaixo assinado e incondicionalmente subscrevê-lo no primeiro dia útil após a eleição.  Os mais sovinas, que não abrem mão de dez mil reis por mês e não se associam ao sindicato, prontamente formaram filas, vieram arquejando para mudar esta irredutível e insensata postura.  Alguns juraram de pés juntos e mãos postas em oração que jamais se desfilariam do sindicato por conta desta memorável lembrança. Os que fumavam, largariam o vício, os que bebiam, a partir de então, continuariam apenas tomando, moderadamente.  Todos homenageando Daniel. A cantina de Dona Dalva tremia em convulsões, mais de 10 graus na escala ritchers. Assemelhava-se ao furor das grandes massas que ovacionam a entrada em campo do time do Fluminense. Mais parecia o tremor das arquibancadas do Maracanã ante o esquadrão da vitória. Xícaras, garfos e demais talheres trepidaram sobre as mesas como se aplaudissem esta gratificante lembrança. As chaleiras apitaram. Os cabelos de Seu Bastos, que reunira tantas flores e cuidara de tantos jardins,  voltaram a nascer. Aconselhados pela querida Marisa, os imundos tomaram banho e os sebosos se perfumaram. Atendendo à determinação de Marisa, Ivete se apressou em trazer mil litros de água de cheiro. Em turbilhão o açude de Bodocongó irrompeu pelos portões da universidade, invocando antigas peladas as suas margens. Telma e irmão Waldir fizeram mil orações. Trezentos e noventa e dois santos, três papas e um assessor especial do Divino desceram dos céus e vieram bater às portas da cantina de Dona Dalva. Até as ratazanas de sindicatos, furtivas e ressabiadas, aproveitaram para pedir perdão. Mil sabiás, bem te vis, sanhaçus e outros pássaros montaram um coral. Os evangélicos de Santa Rosa, os espíritas do Centenário, os católicos do Rosário e comunistas rarefeitos associaram-se no canto. Meu amigo Chicão comprou um par de sapatos novos, engraxou vinte mil vezes para fazer luzir a imagem de Daniel. Toinho trouxe seus trezentos e doze rebentos.  Aquelas saudosas imagens do sindicalismo saíram de antigos cartazes, apostos em paredes rotas, e vieram se somar à lembrança de Daniel. O próprio Marx, de seu túmulo em Londres, e o inestimável Che enviaram mensagens de solidariedade.  Reportavam-se ao tempo em que o sindicalismo era feito de abnegação e militância e solidariedade não brotava de talões de cheque. Até mesmo os miquinhos de Dona Dalva pularam das árvores em cortejo,  em traje de gala, com luvas, fraques e cartolas para apertar as mãos do eminente colega por esta edificante lembrança.

 

Daniel, o grande ausente, que pontificara no Nacional, de Patos, e no América, de Natal. Depois brindara a todos nós com brilhante atuação na antiga ADUFPB-CG.

 

Sim, meus amigos, na seleção, faltaram Daniel e mais dez. Onze  Danieis, jogando do mesmo jeito, cumprindo as mesmas funções, cobrindo com desenvoltura todas as áreas do campus II, atuando com a mesma solicitude, com o mesmo compromisso com o sindicato. Onde faltasse um Daniel, lá estaria outro Daniel. Quando o técnico se omitisse, Daniel orientaria o time. Quando as contas estivessem furadas, Daniel estaria cobrindo com o próprio salário. Sempre vestindo e honrando à camisa. Quando todos estivessem ausentes, ele não estaria.  Daniel , o homem de mil virtudes cuja presença nos humanizava.

 

Quando faltasse um sorriso, lá estaria Daniel presente. Posto que fora assim que aprendera a driblar as adversidades da vida. Sempre com a solicitude e a generosidade com que indistintamente nos agraciava.

 

Pois é meus amigos, o sorriso e a generosidade de Daniel foram os grandes ausentes da seleção.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 05/07/2010