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Artigo - A peleja de Mousinho Caga Pedra contra o monstro calcento

Wagner Braga Batista

 

 

Havia mais de 138 minutos que aguardava atendimento. Estava irritado.

 

Lembrava-se que, há poucos dias, o mesmo telemarketing daquela empresa o chamara de cliente VIP. Não sabendo o que era isto, achou que era uma boa coisa quando lhe forneceram uma senha, uma entrada de graça pro céu.  Disseram-lhe que merecia um tratamento personalizado, deferências e reverencias, convescotes e  acepipes.

 

Tão aprontando comigo. Pensou. Porém, entendeu direitinho quando lhe falaram de tatu. Não do conhecido peba, mas do imponente Tatu Dourado, um plano de serviços telefônicos, de âmbito regional, que cuidava de todos clientes, dos cururus abandonados, dos jegues regenerados e do padrão de qualidade da graxa do chambaril. Garantiram que era tudo assegurado por uma empresa regional, eticamente sustentável, com serviços de excelente qualidade. Confiável e inigualável.  

 

Pensou consigo mesmo: Quando a esmola é grande, até  santo desconfia. Dizem isto e aquilo, mas até agora não me prometeram um quilo de rapadura, uma meiota de cana, uma saco de farinha quebrada, uma lata de umbu ou dez mil reis de beiju.

 

A lenga-lenga ia se estendendo. Já estava ficando moco, com os ouvidos doendo, por conta daquele tamanho moído.  Até que, por fim,  garantiram-lhe que poderia conversar, “o quanto quisesse com pai, mãe, toda família, com comadre Chiquinha, com vaqueiro Biu, com sua vaca reimosa. , com duas cabritas prenhas, com uns cinco preás arretados, com os caçotes do barreiro e com meu cachorro Mocó”, saudosos companheiros do longínquo sertão do Piancó.

 

Pra não alongar a conversa. Mousinho sabia três coisas: era cabra de pavio curto, desprovido de “instintio” e próximo a ignorante. Como já estava ficando irritado, para se ver livre do telemarketing, meteu a mão no bolso, perguntou quanto era “este servicio” e se dispôs a pagar.  

 

Menos de dez dias depois, a realidade falava mais alto. Estava aguardando, irritadíssimo, uma ligação. De tanto  que tinham lhe oferecido, queria ter apenas ser atendido.  Fazer uma reclamação. Se possível, solicitar uma providência. E quem sabe, por uma graça divina, ser contemplado com uma mixaria dos excelentes serviços que lhe prometeram.

 

Não era de seu feitio esperar, muito menos reclamar. Mousinho era um homem bruto, que não falava. Quando muito,  falava pra dentro. Murmurava apenas poucas e incompreensíveis palavras. Aliás, as poucas que conhecia. Como se dizia, sarcasticamente, Mousinho era fino como papel de enrolar prego. Trocando em miúdos, era uma criatura tão rude e embrutecida que também era conhecido pelo vulgo: Caga Pedra.

 

Pois bem, Mousinho já aguardava o atendimento há 142 minutos quando a mesma voz gasguita que lhe oferecera o plano Tatu  Dourado, se fez ouvir.

 

Áspero, Mousinho retrucou:

Moça, já não quero mais falar contigo não. Quero falar com o calcento.

 

A pobre da operadora tentou corrigir.

O senhor quer falar com o call center?

 

Com este cabra mesmo. Respondeu Mousinho.

Mas, meu senhor ,o call center não existe. O call center somos todos nós.

 

Foi a gota d’água que faltava. O irritadíssimo, Mousinho Caga Pedra, sentiu-se injuriado. Subiu nos tamancos.  Bem ao seu modo, bateu o telefone, fechou os olhos e já não atinava pra mais nada. Se fossem muitos ou nenhum calcento, seriam tratados a sua maneira.  Iriam todos pra peia. Iam entrar no cipó de boi.

 

Chamaram a polícia. Era a única solução. Como personagem bíblico, um Sansão com sua queixada de burro derrotando exércitos de fariseus ou um Jesus dos tempos modernos, descendo a porrada nos vendilhões à porta do templo, Mousinho  estava irado. Tinha arrombado dez portas, enfiado o cacete em meia dúzia de seguranças, esganado uns dez gerentes e “uns tal de CEÓ”. Pusera para fugir 493 operadores de telemarketing, quebrado tudo a sua frente. Faltava pouco para chegar ao “tal de calcento”.

 

Numa verdadeira operação de guerra, trezentos agentes da CIA, ex- paramilitares da ITT, juntamente com 32 mercenários e 93 lobbistas, novos torturadores e publicitários renomados, articulados com dez repórteres sensacionalistas e outros tantos vendidos, além de dois batalhões da policia especializada, conseguiram afinal conter Mousinho, o homem que cagava pedra.

 

Abordado por redes de TV não conseguia perceber a dimensão de seus atos. Continuava enfurecido e não dizia coisa com coisa. Colocado numa camisa de força, mal podia dizer seu nome. Pronunciava palavras indeclináveis, censuradas em respeito à lei, aos bons costumes, à sustentabilidade do planeta e dos nossos negócios, do bom nome da empresa, da qualidade de seus serviços, bem como da excelência do marketing e do telemarketing.

 

No dia seguinte, nada fora noticiado.

 

A imprensa, chamada livre, mantivera-se calada. Isenta, como de praxe, frente às pulsões e convulsões do povo raivoso, silenciara.. Fiel aos seus princípios, mantinha-se também alheia ao que se dizia em todos os cultos, nas feiras, nas praças, nos estádios de futebol, em todos os bares,  em plena Copa do i-Mundo. Mas , aqui e alhures, não havia outro assunto.

 

Em Campina Grande, violeiros, repentistas e cordelistas,  ensaiavam um novo gênero de cantoria, o martelo à caga pedra, em homenagem a um novo herói popular chamado Mousinho. No Parque do Povo, atraiam multidões. Festejavam a vitória de Mousinho Caga Pedra, o paladino dos consumidores na peleja contra a insidiosa companhia telefônica e o monstro calcento.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 09/07/2010