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Artigo - Os reis na Copa do i-mundo

Wagner Braga Batista

 

 

No início do século XX, dezoito dinastias controlavam o mundo.

 

Sim, porque o mundo era a Europa. Tirante a América do Norte, um reino dos grandes monopólios Rockfeller, Morgan, etc, o resto era o submundo.

 

Deste submundo, como nos filmes de terror classe B, emergiam umas estranhas criaturas da terra. Uma espécie de zumbis ou congêneres, tísicos, mal cheirosos, desdentados, negros, esquálidos, descalços e renitentes. Insistiam em habitar terrenos baldios carregando uma bola.

 

Isto fora no início do século XX, quando dezoito dinastias dominavam a terra. E surgia, então, esta espécie chamada de futebol latino.

 

Hoje, meus olhos não mentem, lá estavam casais de reis, gritando como cacatuas em gaiolas de luxo e soltando bolhas de ar como peixinhos ornamentais no aquário. Envoltos em redomas de vidro, cumpriam sua sina: Parasitar, crescer, reinar, ser infelizes e reproduzir outros reis.

 

Os reis festejavam as graças da Copa e as desgraças do mundo. Davam a impressão de ter sentimentos, dores e alegrias, mas tinham uma só emoção, ser reis. Haviam ensaiado com afinco durante três  anos, nove meses e dez dias. Agora, apesar dos maus hábitos e do cheiro desagradável da plebe, faziam enorme esforço para torcer no meio do povo. Lá estavam, sentados lado a lado à modernidade subtraída, à economia globalizada, à política de terra arrasada, à esperança desperdiçada, homenageando as diferenças e celebrando as desigualdades. Cada vez que uma desigualdade social progredia em campo, exultavam. Quando homens de tez alva e olhos azuis faziam gols, discretamente sorriam. Quando a supremacia racial e o direito natural se impunham, abraçavam-se reis de diferentes reinados.

 

Os reis da Espanha, da Holanda, da Bélgica, do Reino Unido, de Mônaco, dos Estados Unidos, da FIFA, da CBF, confraternizavam-se, em júbilo, apesar das derrotas dos seus times e de seus respectivos povos. Brindavam às circunstancias e as suas constantes preocupações.

 

Comentavam, entre si:  Imaginem,  ontem morreram somente duzentos aidéticos na Nigéria. E no Sudão? Apostei na bolsa que haverá mais mortos de fome na Etiópia. A cotação do sangue na  África já está mais alta do que a dos diamantes em Amsterdã.  Os opiáceos no Afeganistão estão fugindo de controle, estão sendo vendidos por preços exorbitantes.

 

Outros se preocupavam com o trivial, com a reforma de palácios na Baviera, que custariam tão pouco:  Muito  menos do que a construção de setenta escolas e trinta e dois hospitais.

 

Lembravam-se também dos novos tempos:

 

 Vejam só, doenças tropicais ressurgindo. Certamente estão saudosas do colonialismo.

 

Estes iguais, que são diferentes, são reais. São reis, não são como a gente. Torcendo,  celebravam a alegria de ser iguais, apenas circunstancialmente.

 

Enquanto isto, em outro mundo, sentados na calçada da Rua Vidal de Negreiros, em Campina Grande, PB, integrantes do Círculo de Ajuda Mútua dos Anarquistas de Lagoa Seca e o velho Macarrão, que desafiava gorilas de gravata à cada esquina e se orgulhava de ser o último estalinista sobre a face da terra, acordavam uma paradoxal aliança estratégica. Irmanaram-se num estranho e inusitado pacto de solidariedade cristã, para apagar antigas mágoas da resistência republicana, em 1936. Eu, tricolor empedernido, cedi aos encantos desta aliança estratégica. Solidário, fui flagrado torcendo. Esqueci da existência do rei e torci ardorosamente pelo povo espanhol.   

 

 Torci por aquele time que fazia ressurgir os ideais de 36. Pelo time que encarnava a resistência republicana, o time que não derrotara Franco, mas também não capitulara frente ao fascismo. Nesta disputa ferrenha e desigual, enfrentavam-se o povo das tierras sin pan contra os nababescos príncipes do sistema financeiro.

 

Para este enfrentamento, na calada da noite, às vésperas da partida, Santiago Carillo Soares convocou sete fantasmas da Barcelona insurreta. Sobreviveram nas carnes dos povos Basco e Catalão. Revolvendo-se nas entranhas do ETA e nas façanhas de Iniesta. Disfarçada de Puyol, Dolores Ibarruri, a Passionária, aos 93 anos, apesar da pneumonia, cabeceava com precisão e rebatia com ardorosos discursos as infâmias contra os republicanos. Resoluta, anunciava ao mundo: Eles não passarão.

 

Eles, eram um exército de Vans, Vam der Broschem, Vam Stophen, Vam Vam Derbilt, Vam Demerviu, Vam Desmilinguiu, Vam pra ...., além dos universais e espertos irmãos Vam Tagem e Vam Tagem Competitiva,  que jogam pra qualquer lado e se vendem por qualquer quinhão.

 

Eram tantos Vans e somente onze minúsculos representantes do povo espanhol, o maior deles medindo apenas um metro e trinta e dois centímetros de altura. Era uma disputa desigual de Davi contra Golias. Eles, os príncipes da dinastia L’Orange,  travestidos de Cruyffs e de Sneidjers, tinham dois metros e setenta e dois centímetros. No entanto, tinham dificuldades. Não conseguiam deter a fúria dos anões de Barcelona e nem tampouco se agachar, para furtivamente semear  seculares instituições financeiras em cada palmo de terra, em cada bandeirinha de  corner, infestar os campos de futebol  com a erva daninha da agiotagem.

 

Eram tantos Vans, que por força de inflexão linguística, acabaram indo.

 

E foi assim, meus amigos, que o povo republicano espanhol, apesar dos seus reis, representado por minúsculos anões de Barcelona, que não tinham mais do que um metro e trinta de dois de altura e ao longo da partida foram crescendo, derrotou dezoito dinastias européias. Graças a isto, ainda hoje, as quatro horas da tarde, é festejado pelo velho Macarrão, por não mais do que três ouvintes de rádio de pilha e por um cidadão de nome Vidal de Negreiros, um jovem paraibano que lutou arduamente contra a invasão holandesa, em 1974, 1986 e 2010, na capitania da Paraíba, na cidade de Campina Grande, PB.

 

Viva o povo republicano espanhol  que resgatou esta espécie quase extinta: o futebol latino !

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 12/07/2010