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Artigo - O craque na Copa do i-mundo

Wagner Braga Batista

 

 

Há uma importante campanha contra o crack e não devemos estimular esta opção.

 

Em Curitiba, um enorme outdoor presta homenagem a M’Dunga, pela adesão incondicional à campanha e não ter usado, em nenhum momento, o craque na Copa do i-mundo.

 

No entanto, os corações aflitos e renitentes ainda se perguntam: por quê? Inevitavelmente, subsistem questões sobre o craque. Afinal, quem foi o craque da Copa ?

 

Esta era a pergunta que não queria calar. Causava reboliço nas casas de família, nos botequins, nas repartições públicas, nos coração dos aflitos e desacreditados da seleção da CBF, da Nike e dos guerreiros da merda da Brahma.

 

Quando me perguntaram quem seria o craque da Copa, não hesitei. Não poderia ser outro. Afinal fora ele quem propiciara esta nova designação da Copa: a Copa do i-mundo. Ele que contribuíra com todas suas forças para inacreditáveis jogadas. Ele quem tivera atuação colossal, apesar da grandeza do evento. Destacara-se em quase todos os jogos. Fora o mais citado e mais comentado protagonista da frustração coletiva. Provocara abalos e comoções em quase todas torcidas. Por fim, sobressaiu-se.  Foi coroado como um verdadeiro astro.

 

Por mérito, só poderia ser ele o craque da Copa do i-mundo: o juiz ladrão.

 

O juiz ladrão fora decisivo, sua atuação, impecável. Sagaz e ladino, sem suar a camisa e sem fazer esforço, definira de um só golpe jogos disputadíssimos. Sua performance, irretocável. Ninguém jamais se igualará neste mister. Enquanto jogadores maltratavam a bola, ele com mãos leves e dedos de seda, burilava e acariciava o apito. Fazia trinados incríveis, como uma cotovia cediça que voa, migra e canta em todas direções. Ora apitava para um lado, ora para outro. Roubava sem discriminações.

 

Não há como negar, o juiz ladrão foi a figura proeminente da Copa do i-mundo. Por isto vemo-nos na obrigação de honrá-lo com este laurel de craque da Copa da inanição.

 

Devemos também estender este reconhecimento, e este mérito, à FIFA, às comissões arbitrais e aos patrocinadores. Quiçá, em outras Copas do i-mundo possam comprar juízes ladrões tão eficientes. Eles, que asseguraram este brilhante desempenho do juiz ladrão, talvez possam criar espaços mais amplos e favoráveis para que o juiz ladrão se apresente outra vez sem constrangimentos, com total desenvoltura e em toda sua plenitude.

 

A atuação do juiz ladrão foi extraordinária. Fez sozinho o que times inteiros, repletos de empresários de craques e agenciadores de jovens atletas, não conseguiram fazer. Deu o tom e o ritmo da fraude. Definiu os resultados dos jogos.

 

Quando fora de campo, queriam surrupiar um incauto torcedor, o juiz ladrão revestido de toda autoridade, apitava e interrompia a partida. Como um dono de quarteirão, um justiceiro dos campos de várzea, admoestava o larápio: Espera lá gatuno, pula fora, não se arvore a bulir com o alheio, este pedaço é só meu.

 

Por menor que fosse a tentativa de roubo, o juiz intervinha e punha ordem em seu pedaço. Roubo tinha que ser dentro da lei, com autorização da FIFA. Como um juiz ladrão ético, chamava para si a autoridade. Roubo tinha que ter a sua chancela. Tinha que vir com assinatura, firma reconhecida, atestado de vacina e carimbo do CGC de juiz ladrão na súmula do jogo, ao final da partida, para conferir autenticidade ao roubo. Senão não vale.

 

Nas prévias, com seus auxiliares, repetia constantemente: "Não é a ocasião que faz o ladrão, ...o provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: 'A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito."*

 

Perorava a todos seus discípulos:

 

Orgulhemo-nos da nossa classe. Promovemos a redistribuição de renda, geramos renda, emprego para novos juízes ladrões. Suscitamos novas virtudes, que se espelham em nossos pecados. Com o quanto que nós roubamos, renovamos o acumulado. Somos um patrimônio histórico da exploração do proletariado e, ora, dignificamos o capitalismo civilizado.

 

Com lágrima nos olhos lembrava aos epígonos de ladravazes e futuros juízes ladrões:

 

Os pecados do ladrão são as virtudes do banqueiro.(Bernard Shaw)

 

Há que se reconhecer, na Copa do i-mundo o juiz ladrão foi impar. Ágil como um gato, mão leve como uma sílfide, dedos de seda de toque imperceptível, hábil como político corrupto e astucioso como um Arsene Lupin dos gramados.

 

Mais parcial, não seria possível. Travestia-se de todas as formas. Utilizava cintas e ligas, roupas íntimas transparentes e purpurina prateada ao redor dos olhos, requisitos indispensáveis para as arbitragens da FIFA. Esguio e ladino, conduzia-se como um coreógrafo do furto anunciado, não acreditado e inimaginável. Como a musa paraguaia, atraia nossos olhares para seus seios para desviar a atenção do apito.

 

Não apitava como um soprador vulgar, exercitava  malabarismos, bailava e explorava trejeitos do insuperável Margarida, objeto de tantas e infundadas discriminações. Reservadamente fazia confidencias ao bandeirinha, falava de suas fraquezas e excitações, perguntava-lhe se queria dividir seu futuro, morando num apartamento ou num aconchegante bar do Leblon.

 

Com o apito, tinha uma cumplicidade harmoniosa, delinqüente e furtiva. Eram tão harmoniosos no roubo  que faziam inveja à quadrilha do Doutor Arrudinha, nosso homem em Brasília, e aos Lupions instalados em cabines esportivas na África do Sul. O apito adquiria vida, autonomia. Enquanto o juiz ladrão bailava em campo, o apito, sozinho, encarregava-se desta difícil e solerte arte de roubar. Porém, com discrição, fineza e talento, próprios do juiz ladrão que, com peculiar elegância, também roubava o espetáculo.

 

Não comparem o juiz ladrão da FIFA com o Zé dos Telhados, o Meneghetti ou um meliante qualquer.

 

O juiz ladrão é um homem fino, culto e poliglota. Lê e relê autores clássicos. Rouba também em vários idiomas. Fino em todas suas falcatruas, não negligencia a astucia e as regras da etiqueta. À mesa tem hábitos finíssimos. Como conviva, jamais rouba a prataria da casa. Utiliza cinco talheres, se sobressai em todas recepções e receptações. Orgulha-se de ser um juiz ladrão de estirpe, de sangue azul. Sente-se ofendido quando chamado de biltre ou ladravaz.

 

Educadamente, responde: Meu senhor não sou um biltre, sou um juiz ladrão. De boa família.

 

Não há como contestar a indicação do juiz ladrão como o craque da Copa do i-mundo. Com este talento e erudição, o juiz ladrão tem uma biografia notável e um currículo prenhe de realizações. Tem uma vida inteira dedicada a sua mais autentica arte e ao seu verdadeiro mister, o roubo.

 

O mais impressionante é a unanimidade alcançada pelo juiz ladrão. Um artista, reconhecem todos.  E, meus amigos, ressalte-se, pertence à FIFA. Está integrado ao quadro desta insigne instituição, com quem divide seus ganhos e méritos. Reitero que a FIFA deve ser reconhecida pela escolha do juiz ladrão. Reconhecimento compartilhado por todas torcidas. Mesmo as rivais. Todas foram unanimes em destacar a decisiva atuação do juiz ladrão.

 

O juiz ladrão é a verdadeira consagração dos preceitos pós-modernos. Da ausência de sujeito e responsabilidade histórica, que lhe permite dizer, cinicamente: Não vi. Não sei. Não estava lá.  Do fim das ideologias, dos grandes processos históricos e da inconsistência das narrativas, posto que ante suas façanhas, está definitivamente comprovado, tudo se reduz ao trilar do apito. Da prevalência do sentido oculto, posto que jamais saberemos o que move o juiz ladrão e o que se esconde por trás de suas atitudes. Da farsa e do simulacro, estes inconfundíveis valores pós-modernos, que permitem que todos sejam, o que não são.

 

O juiz ladrão também instituiu o primado das aparências, posto que todos puderam ser vistos como não são. Reconhecer-se, onde, de fato, nunca estarão. 

 

O juiz ladrão foi inigualável. Foi o senhor da Copa do i-mundo, sem contestação. Roubou tudo. Na frente de todos, dentro e fora de campo. Chamou a autoridade para si, roubou a cena e o espetáculo. Não deixou que ninguém lhe retirasse este mérito e este decisivo papel. Para certeza de todos, roubou com determinação.  

 

Um craque da ladroagem. Conseguiu o inacreditável: aos olhos de todos, sem que ninguém reparasse, subtraiu o futebol de nossos olhos.

 

* Machado de Assis (1904)  Esaú e Jacó,  Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro,  p. 82

URL: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2042   acessado em 8 de julho de 2010


Data: 13/07/2010