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Artigo - Castilho, o goleiro invisível

Wagner Braga Batista

 

 

O Brasil é o único país do mundo que tem fábricas de craques. Estão em sediadas em todos municípios, com ramificações em todos subúrbios e periferias. São instaladas sem alvará, sem permissão da prefeitura, sem burocracia e não pagam impostos a ninguém.  Aparecem da noite para o dia, em qualquer esquina ou terreno baldio. Crescem por meio de trabalho solidário, cooperativo e de auto-gestão. São aquilo que uns sujeitos esquisitos chamam de economia solidária.

 

Infelizmente, para as coisas do bem, surgem as coisas do mal. Por causa delas surgiram as contrafações. São fábricas soturnas, sombrias, com trabalho infantil e empregados mal remunerados. Nelas são feitos produtos adulterados, craques de meia sola e juízes ladrões. Nelas também são fabricados outros supérfluos, entre eles os técnicos de futebol falsificados.

 

Enquanto craques são produzidos artesanalmente, juízes ladrões e técnicos de futebol são feitos aos borbotões. São produzidos em série, projetados para durar pouco, ser descartáveis e infernizar a vida da gente.

 

Pois bem, estas fantasiosas fábricas de craques proliferam como grama no cio e produzem milhões de craques fora de série. Contudo, apenas um se tornou inigualável.  Um jogador chamado Castilho, o goleiro invisível.

 

Castilho o excelente goleiro, mas não só. Era o goleiro leiteiro, destes que a chusma despeitada chamava cagão. Quando Castilho deixava de pegar as chamadas bolas indefensáveis, elas também não entravam no gol. Batiam na trave, eram devoradas por cabras vadias que vagavam pelas gerais do Maracanã ou desviadas pelas mãos de Mario Mendonça, outro goleiro do Fluminense, que pegou trezentos e doze pênaltis numa partida, depois de atravessar a nado a Baia de Guanabara.

 

Quando as torcidas adversárias já festejavam o gol, esqueciam-se de que o goleiro era Castinho. A bola estava em suas mãos. Não em suas mãos, mas em alguns de seus dedos. Sim, meus amigos, alguns de seus dedos, posto que não tinha todos os dedos na mão. Talvez tenha sido o único jogador na História do Mundo que amputou uma parte do corpo, para jogar no dia seguinte. Para jogar pelo Fluminense.  Por amor ao Fluminense.

 

Meus amigos, isto não é ficção, não é fantasia, é a pura realidade.

 

Havia fraturado um dedo. Quando lhe disseram que deveria engessá-lo e ficar um mês sem jogar, decepou-o com uma faca de cozinha. Poderia ter sido com a gilete utilizada pelo roupeiro, com o cutelo de um machado que comprara na venda da esquina ou com a lâmina da excalibur, com ajuda do mais santificado cavaleiro da Távola Redonda, Galahad. Aquele que era  o mais puro e casto, o detentor de todas virtudes,  o único que poderia alcançar o Santo Graal, mas não se igualava a Castilho.

 

Castilho fugia do imaginário das donas de casa para transitar no impenetrável coração de seus embrutecidos maridos. Entrada sem pedir licença em lares invioláveis, nas alcovas, em paixões recônditas de mulheres caseiras e no árido coração de homens sem sentimentos. Neles só havia lugar para uma pessoa, Castilho o inesquecível goleiro tricolor. Aquele que lhes fazia gritar sôfregos e desesperados nas gerais e alambrados pelo seu nome em pranto. Castilho era a salvação das donas de casa e dos maridos embrutecidos.

 

Objeto de paixões ambivalentes que provocava suores noturnos em mulheres bem casadas e taquicardia em homens embrutecidos. Sim, meus amigos, nestes sujeitos embrutecidos pela vida que passam registro de masculinidade em três cartórios antes de entrar qualquer mictório publico.

 

Era também admirado pelas crianças. Principalmente pelas crianças que acreditavam naquele Brasil varonil, um país que lavava roupas com sabão de coco e tingia as bocas de políticos corruptos com pastilhas de anil.

 

Certa feita, Ademir, o Queixada, o maior centroavante de todos os tempos, o único ponta de lança que se arriscava ao embate com Castilho, tremeu nas pernas. Ele que tinha carteira de masculinidade assinada pelo presidente do clube, além de todos direitos trabalhistas assegurados, abriu mão de tudo. Pediu as contas antes do jogo.

 

O grande Ademir, como um menino mijão, despira-se de suas chuteiras e de todas veleidades de jogador durão, para chorar lágrimas copiosas. Choramingava pelos quatro cantos do vestiário, debruçado sobre os ombros de seus pares. Em convulsões pedia para não entrar em campo. Ajoelhara-se aos pés de Gentil Cardoso.

 

Mesmo este técnico que era senhor de todas as atitudes, detentor de todas verdades e sabedor de todas as mumunhas do futebol, não encontrava palavras. Não tinha mais o que dizer. Não sabia o que fazer. Não podia enfrentar Castilho, posto que Castilho tornara-se invisível.

 

Vejam bem meus amigos, em sua grande humildade, diferente dos fáusticos e espalhafatosos goleiros que, hoje, se vestem de amarelo, púrpura, borboleta ou bem te vi, ostentam camisas extravagantes, Castilho trajava a cor da humildade.

 

Aquela cor que nem todos os homens enxergam ou conseguem ver.  Aquela cor que confundia a visão do mais arrojado e perfeito atacante do Vasco. Aquele que não sentia dor, alegria ou hesitação. Que nunca se vira abalado por nenhuma fraqueza. O chamado homem que não chora, o mais másculo de todos os homens viris, agora se sentia como um peru embriagado, aniquilado pela derrota anunciada.  Morto de véspera, pela simples alusão a Castilho.

 

Aquele mesmo, Ademir, o Queixada, que tinha quarenta em dois caninos aparafusados em cada mandíbula. Que a torcida do Vasco elegera como seu símbolo de virilidade. Que carregava seu retrato, na carteira de bolso, lado a lado, com o retrato da namorada. Do qual se orgulhava por ter três milhões quatrocentos e dois mil e noventa e três pêlos enrijecidos no corpo e três litros de testosterona circulando no sangue, chorava como um menino mijão. Derramava-se em prantos nos subterrâneos do Maracanã.

 

Tinha medo de Castilho, o goleiro que se tornava invisível trajando a camisa da humildade.

 

Castilho, no entanto, não era apenas o goleiro invisível. Era também mestre em outro ofício: voar. Pegava bolas a trezentos metros do chão e passando por baixo da grama colada à outra trave.

 

Diziam que era o goleiro voador. Tanto disseram, que acreditou que pudesse voar. Um dia, atirou-se de uma janela do sexto andar de um prédio no bairro de Olaria. Desde então, como todas as lendas, não se soube mais de seu destino, de seu paradeiro.

 

Como um mito, dissolveu-se no ar ou se tornou eternamente invisível.


Data: 15/07/2010