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Artigo - Os soviets que já não existiam...

Wagner Braga Batista

 

 

Havia participado do levante húngaro, em 1956. Tornara-se um anticomunista que lutara de corpo e alma contra a ameaça vermelha.

 

Naqueles tempos da ameaça vermelha, vedara as frestas das portas e janelas  com temor de que o vento do Cáucaso penetrasse em seu lar, deflorasse sua filha, arrancasse seus olhos e violentasse toda sua família. O vento do Cáucaso, esse agente da guerra fria, que cumpria ordens de Moscou, desfraldava as bandeiras do terror. Da foice que degolava e do martelo que tudo destroçava.

 

Enfim esse tempo cessara, já podia abrir as janelas da casa, tirar os ferrolhos da porta e até mesmo a secular imagem do seu santo protetor.  Então, nos novos tempos que se anunciavam, convivia com uma agradável harmonia global.

 

Mas neste novo cenário europeu, muitas surpresas a vida ainda lhe reservava.

 

Soviéts que  já não existiam, não se sabe como, agora, diariamente, batiam as suas portas.

 

Como se fossem velhos amigos, adentravam em sua casa. E, aos poucos, tornavam-se novamente  uma  ameaça. Uma ameaça constante, presente na sua sala de estar.

 

As TVs e os rádios, ainda não havia internet, informavam a todo mundo que os soviets não mais existiam. Eles também ouviam e não acreditavam. Exibiam cicatrizes e marcas em sua alma. Eram verdadeiras, sabia, mas mesmo assim, não estava certo de que eles existiam.

 

Chegavam sujos e, alguns, até maltrapilhos. Vinham de exaustivas jornadas, de duras batalhas, mas enfim sobreviviam. Quem diria ? O soviets que não existiam...

 

Como seres humanos e mortais, condenados à convivência e à amizade, apesar da ameaça vermelha que recalcitrava, aos poucos partilhavam segredos da vida e do tempo que sobre eles pesava.

 

Por um dever de consciência, relatara o seu passado. Falara da sua indignação com os processos de 1936, com a punições aos dissidentes e com invasão da Hungria, onde lutara. Dizia que era anticomunista convicto, mas os soviets que não existiam, faziam ouvidos de mercador. Apenas riam.

 

 Apesar da advertência de que era anticomunista, sem cerimônia, os soviets que não existiam privavam de sua companhia. Sentavam-se em sua poltrona e colocavam botas sujas de lama e neve de Stalingrado sobre as suas cadeiras. Fumavam charutos cubanos e se afogavam em vodka, tirada a pulso de colaboradores nazistas, escondidos nos esgotos de Varsóvia.  

 

Pensava consigo mesmo: Os russos sempre foram cruéis.

 

Lá pelas tantas, os soviets que não existiam tiravam balalaikas dos bolsos, canções tatuadas na pele e, chorosos, desfiavam reminiscências. Falavam da resistência dos marinheiros de Petrogrado, das agruras do Exército Vermelho e dos triunfos econômicos do socialismo. Diziam-se camponeses rudes e incultos, seduzidos pelo comunismo.  Depois tiravam um pão de cevada, uma lamina bem afiada, um pedaço de carne tostada e -  vejam só, que displante- convidavam-me para comer. A mim, na minha casa.

 

Ensimesmado, pensei:

 

Insolentes. Agora, que estavam órfãos, não tendo mais a quem ameaçar, vinham bater à minha porta. Pior, trazem esta insossa comida e tem a ousadia de me convidar a comê-la, em minha própria casa.

 

Murmurei:

 

Felizmente, quando sentem fome, já não comem crianças.

 

Mas o apetite dos comunistas atrozes, não parava aí. Quando viam panelas no fogo, invadiam a cozinha, empinavam os narizes. Tanto cheiravam a comida, que constrangido, permitia que filassem a bóia. 

 

Saudosos e descontrolados, falavam celeremente.  Expunham sua intimidade, falavam da solidão nos fronts, de suas namoradas mortas em terras desconhecidas, das vilas rurais massacradas pelos nazistas, dos vinte e dois milhões de russos assassinados e da grande arrancada até Berlim.  

 

Estarrecido, imaginava:

 

Tantos horrores sobre os quais nunca tinham me falado. O que mais surpreende é a debilidade destes heróis de Stalingrado. Estes frágeis homens, a minha frente sentados, fortes soldados, não sentem vergonha de suas fraquezas.

 

Depois,  os soviets que não existiam, alcoolizados e nostálgicos, tornavam-se expansivos. Decantavam suas amarguras, chamavam para dançar e na falta de companheiras, arriscavam polcas solitárias em cima da mesa.

 

Da última vez, quebraram dois pratos, entortaram talheres e racharam o tampo da mesa. Enfim, nada a reclamar. Antes de sair, beijaram minhas faces, deixaram lembranças e pagaram os prejuízos.

 

Vez ou outra, os soviets que não existiam, voltavam. Ora, dois ou três, já não eram um batalhão. Já não vinham marchando, cantando hinos ou portando estandartes da revolução.

 

Depois, já não vinham amiúde. Chegavam taciturnos, usando calças de brim, sapatos coloridos e óculos escuros. Já não dançavam polca, nem traziam balalaikas nos bolsos. Possuíam i-pods, relógios turbinados, cintos cromados, olhares pós-modernos e narizes prateados.  

 

Agora eram educados, não usavam botas sujas de neve e tinham vergonha.  Uma vergonha profunda que se mistura à tristeza.

 

Eram filhos dos soviets que não existiam. Tornaram-se abstêmios, não bebiam mais vodka, nem derramavam seus sonhos sobre a mesa, apenas vertiam um pó branco e cheiravam.  

 

Desta feita, traziam um pequeno pacote, que não era uma ameaça vermelha, nem tampouco um pão de cevada. Era uma pequena encomenda vinda do Afganistão. Traziam seringas, torniquetes e agulhas sobressalentes. Vinham acompanhados da máfia russa, de chefes tribais, de senhores da guerra, de prisões clandestinas, de mercenários, de agentes especiais a serviço da CIA e de novos instrumentos de tortura.  Traziam uma encomenda para ser trocada por  delações e mentiras, por novos assassinatos, por notícias urdidas na mídia e por imagens distorcidas dos saudosos soviets que já não existiam.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG  


Data: 23/07/2010