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Artigo - A enorme torre que flutuava no meio do mar

Wagner Braga Batista

 

 

Havia uma enorme torre que flutuava no meio do mar. Quando os marinheiros se perdiam a torre ia buscar. Quando vinham as tempestades, arrastava as caravelas para as calmarias do mar.

 

A torre que flutuava também se punha a mergulhar. Descia às profundezas abissais dos oceanos para resgatar desesperançados, homens e mulheres que naufragavam e portos descrentes de novas chegadas. Salvava homens dos vícios, mulheres do frio e meninos do crack. Catava, um a um, no meio do mar turbulento, náufragos, plutocratas ou pestilentos.

 

A torre colossal proativa e ambivalente, imergia em oceanos para redimir seres humanos. Escafandrista do espaço,  limpava o lixo do universo. Emprestava asas para anjos, acolhia astronautas dispersos, posicionava satélites geoestacionários e ajudava gaivotas a voar.

 

Dia sim, dia não, percorria portos imaginários, a cata de novas cidades. E quando não havia pousadas, para alivio dos marinheiros, a torre que flutuava, desenhava mapa mundi imaginários para abrigar fantasiosas cidades. Nos mundos do universo reconhecia o lugar das tristezas e onde a felicidade reinava.  

 

A torre que flutuava, arrimo de navegantes dos sete mares, conhecia, uma a uma, as ondas caudalosas. Aquietava mares turbulentos, conversava com Netuno e enganava noites tenebrosas.  Contava estórias fantásticas para meninos de rua, que fascinavam marinheiros, encantavam prostitutas e saciavam esposas desejosas.

 

A torre que flutuava, carreava a solidariedade dos homens, levava fraternidade aos povos e liberdade aos oprimidos. Impregnada de sonhos, embalava nuvens com antigas cantigas e adormecia a ira das  tempestades.

 

Dia sim, dia não, após cumprir seu oficio, oferecer tanto alento, a torre voltava pra casa para cumprir sua dupla jornada.  

 

Ancorava em terra e se multiplica em mil. Ainda cansada, deslocava-se com suas ancoras para periferias de grandes e pequenas cidades. Detinha-se em pontas de rua e em comunidade favelizadas.

 

Ali, a torre que flutuava, se humanizava.

 

Iria cumprir longas jornadas de trabalho ou ficar desempregada.  Transmutava-se em homens negros e mulheres sem emprego. Em trabalhadores rurais e operários de fábricas. Em estudantes de cursos noturnos e caixas de supermercados. Em portuários, carregadores e garis terceirizados. Em enfermeiros, plantonistas de hospitais ,e jovens médicos idealistas, que não prostituíam sua profissão

 

 Era assaltada pelos ladrões, abordada pela polícia, constrangida pelo narcotráfico e submetida a provações. Tinha uma companheira igualmente humilhada. Filhos que freqüentavam precárias escolas e duras privações. Mas, as torres humanizadas, diziam aos homens desacreditados que havia um mundo melhor.

 

Um mundo que ficava numa ilha pequena, perdida e quase desaparecida, que só seus mapas mundi mostravam.

 

O povo descrente, insistia em não acreditar. Tanto insistia que, um dia, a enorme torre que flutuava adentrou pelo mar.

 

Talvez, passados três anos, quando o povo descrente, reiterava que não voltava e em nada creditava, novamente, a torre aportava nos corações desta gente. Numa das mãos trazia uma imagem do Che e na outra um punhado de terra desta minúscula ilha isolada, quase perdida num desolado oceano de lucros, brilhos e cores, de águas infectadas.

 

Mostrou a terra da ilha aqueles que não acreditavam. Lançou o punhado de terra que trazia na mão. Como se fossem sementes, as terras brotavam do chão, subitamente, em forma de vida nova, de um tempo e de um futuro decente para os homens que lá estavam.

 

Aquela terra, tão tosca, feita de generosidade de um povo, que tinha quase nada.  Tinha, apenas ,a terra como semente que mesmo em chão árido brotava. A terra daquele povo, que não tendo quase nada, aprendera a importância de ser feliz com tudo que compartilhava, trabalho, saúde, educação e dignidade. Compartilhava consigo mesmo e com outros povos , a despeito de povos que tudo tinham e não tinham nada.  

 

A enorme torre que flutuava nas ondas e navegava no ar era chamada pelos marinheiros de torre de Gibraltar. Dia sim, dia não, voltava pros oceanos. Usava  o sinal do arco-iris e uma bandeira vermelha que tremulava no meio do mar.

 

Nos bairros pobres, em que dia sim, dia não, habitava, chamava-se simplesmente do nome que lhe queriam dar.  Tinha miopia nos olhos, pulsos de ferro e coração de brinquedo.

 

Quando estava empregada, ora trajava macacão de operário, ora boné de pedreiro. Um dia, era homem, outro mulher. Um dia fazia biscates, no outro era carpinteiro. Pintava paredes aos sábados e,  aos domingos,  cuspia no lixo pepitas de ouro, de vinte quilates, que tanto desprezava .

 

Com o nome que lhe queriam chamar, não sabia, que dia sim, dia não, era a enorme torre de Gibraltar, que salvava marinheiros de todos naufrágios e flutuava no mar.

 

Em sua ingenuidade, também não sabia, que com seu trabalho precário, sua frágil visão e suas mãos calejadas, construía moradas para o presente, pontes para o futuro e pavimentava ruas abertas para o curso da humanidade.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 30/07/2010