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Artigo - A estória da luta renhida entre farsantes do lado B contra os farsantes do lado A no disco que começou a chiar

Wagner Braga Batista

 

Na pobre casa de Dona Hermelinda havia uma antiga vitrola e um disco de 78 rotações. Quando o disco tocava os farsantes pulavam de lá pra cá. Do lado B pro lá A. Do lado A  pro lado B.O disco mal conseguia tocar. E a pobre Dona Hermelinda não podia escutar suas canções por causa da renhida disputa dos farsantes do lado B contra os farsantes do lado A.

 A essa estória começa assim.

Os farsantes entraram em renhida disputa pela arte de disputar. Uns disputavam o discurso, outros apenas o recurso de se fazer escutar. Os mais ousados, disputavam um percurso com inomináveis objetivos a alcançar.Os menos ambiciosos, denunciavam concursos e queriam ser nomeados para um cargo público qualquer. Os farsantes não se submetiam a riscos, mas, nesse afã de disputar, consumiam, gradativamente, as trilhas do disco.

Como tantos farsantes, no pedaço e no percurso, aos poucos, pulavam fora do disco. Disputavam, então, espaços nas rádios e na televisão. Disputavam entre si o esmero na arte de disfarçar e o ingente esforço de ter sempre o que dissimular.

Neste embate, pouco edificante, os farsantes queriam se superar. Queriam constituir um domínio, ter seu próprio disco e, sempre que possível, um rico patrocínio. Ao invés da música de Dona Hermelinda, queriam que os ambientes fossem tomados pelas suas vozes. Pelos seus interesses de farsantes. E onde houvesse falsos farsantes, prontamente, punham-se a denunciar, posto que não queriam se misturar.

Nesta luta imaginária e renhida dos farsantes do lado B contra os farsantes do lado A, ganhou corpo a reivindicação maior dos farsantes, a regulamentação da profissão de farsantes que falsos farsantes não pudessem abraçar. Poderia se chamar de Legislativo ou o nome que se quisesse dar.

E, deste modo, surgiram mútuas, injuriosas e injustas acusações entre os que se julgavam autênticos farsantes e os que apenas se esmeravam no mister de enganar.

Neste cenário turbulento, desenhou-se a guerra entre os farsantes. Entre  os que queriam ser mais farsantes, farsantes edificantes e não tinham mais com que se contentar.  

Historicamente, este conflito ficou conhecido como a luta dos farsantes do lado B contra os farsantes do lado A.

Os farsantes do lado A, queriam ser farsantes do B e os farsantes do lado B, queriam ser farsantes do lado A. Ninguém entendia esta contenda. Mas, como farsante não há quem entenda, assim começou a disputa e assim transcorria a contenda entre os farsantes do lado B contra os farsantes do lado A.

Os desacreditados de um lado queriam os outros desacreditar. Maquinavam, mentiam, acusavam-se de não ser farsantes. Insistiam no oficio de injuriar. Uns se diziam verdadeiras farsantes e acusavam os outros de apenas dissimular.

Quando uns mentiam de um lado, os outros fingiam acreditar. Como habilidosos farsantes, faziam crer, apenas para enganar. Acreditavam em tudo, eram adeptos de todas as crenças, devotos de todos os santos e fervorosos fiéis de todas religiões.

Aprenderam sofisticadas técnicas de mentir e enganar. Trocavam as mentiras de nomes e as mentiras de lugar. Com eles, a mentira aprendera a saltar. Pulava de boca em boca e sabia até versejar.

De disputa em disputa, os farsantes, por fim, consentiram, que não deveriam brigar. Criariam uma profissão abrangente com farsantes de todo lugar. Teria farsantes do lado B e farsantes do lado A. Haveria cargos e gratificações para todos e muitas postulações para postular. Em igualdade de condições, farsantes de ambos os lados, poderiam disputar não apenas lado B ou lado A . Disputariam o bom bocado e o grosso trocado que arrancariam do eleitorado. Uns seriam legítimos candidatos farsantes do lado B, outros candidatos a insignes  farsantes do lado A.  Agora, como farsantes cordatos, todos teriam a ganhar.

No fim da jornada, nesta esfera longínqua da vida e desta democrática escalada, em que todos os gatos são pardos e todos farsantes se igualam, estava  celebrado o acordo.

Os litigiosos farsantes abdicaram das rusgas e se declararam fraternos farsantes de um só lado e de um só lugar onde todos pudessem lucrar.

Neste pacto honroso, incluíram uma tratativa. Elaborariam um código de ética, com um principio invulgar: farsantes do lado B e farsantes do lado A não deveriam mais se chamar de farsantes, posto que, depois da profícua tratativa, tornar-se-iam fraternos tratantes, não poderiam se perder em litígios e deixar a jogada melar.

Pelo acordo celebrado, ficaria metade para cada lado. Como combinado, seriam contemplados os que dissessem sim ou não. Metade pra oposição, metade para situação. Como negociado, teriam a mesma profissão, mas, para manter a fachada, deveriam permanecer cada qual em um lado. Deste modo, não só participariam de eleições e falcatruas, mas estariam habilitados a concorrer a licitações. Um dia ganharia um, o outro no dia seguinte.

Na distribuição de cargos e dinheiro publico, metade dos farsantes gratificados do lado B, ocuparia metade dos cargos de farsantes do lado A. Metade dos farsantes gratificados do A, ocuparia metade dos cargos de farsantes do lado B.

Como confiáveis tratantes, sabiam que ainda haveria tantas tratativas à tratar, posto que defendiam a   rotatividade do poder e a alternância das gratificações para que todos pudessem lucrar.

Se algum farsante fosse acusado, seria duplamente recompensado. Receberia comenda de ex-farsante do lado A,  aposentadoria vitalícia, como novo integrante do lado B e, para qualquer eventualidade, criar-se-ia o lado C, para assegurar o futuro dos farsantes de menor idade.

E assim como tudo que é arranjado e negociado continuaria a renhida luta dos farsantes do lado B contra os farsantes do lado A para ter o que abocanhar. Uns se dizendo justos, outros injustiçados. Outros se proclamando penitentes, outros penalizados.

A narração desta luta confusa, sem um motivo em que se basear, rodava numa antiga vitrola com  tampo de couro e uma hábil ventarola que podia cantar.  Com o prato do disco empenado e a borracha enrijecida, pouco sabia da vida ou do tempo que iria durar, mas as válvulas antigas só faziam esquentar. Guardada por longos anos, muito esquecida e aquecida, a vitrola de Dona Hermelinda tinha uma agulha rombuda, um som estridente causado por exaustivo trepidar, mas, apesar de todos defeitos, ainda queria  tocar..

Porém, o velho disco de 78 rotações, feito de cera de carnaúba, não mais resistia às pululações, às postulações e às tratativas de tratantes, aos engodos de farsantes e um dia se pôs a chiar.

E, desde esse dia, pouco se ouviria da luta renhida dos farsantes do lado B contra os farsantes do lado A..

E assim, desta estória, que se atualiza no tempo, só restou o marketing dos farsantes notáveis, dos tratantes inigualáveis, em quem, por causa da perda do disco, a pobre, calejada e indignada Dona Hermelinda, jamais iria votar.

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 04/08/2010