topo_cabecalho
Artigo - A fome de ler e o preço das bananas

Wagner Braga Batista

 

No final da década de 60, a Editora Civilização Brasileira afirmava-se pela sua linha editorial. A editora dirigida por Enio Silveira voltava-se à divulgação, à reflexão e ao debate dos problemas nacionais. Considerando o contexto e o mundo editorial, apresentava uma dinâmica surpreendente. O viés crítico de sua linha editorial contrastava com as publicações de outras editoras. Porém, neste período, possivelmente por conta da efervescência política, após o golpe de 64, crescera significativamente lançando títulos e autores à margem do mercado.

Marcante deste período é a Revista da Civilização Brasileiro que, salvo engano, lançou 22 edições entre 1965 e 1969, apresentando um rico panorama da política e da cultura no Brasil durante este período. Reeditada uma década mais tarde, em meio à revitalização da imprensa independente e do debate político, não demonstrou o mesmo vigor da primeira fase.

Em 1968, a Editora Civilização Brasileira lançou uma campanha que tinha como lema “Fome de ler”. Utilizando a imagem do humorista Jo Soares, procurava estimular o apetite pela leitura. Pouco tempo depois, sua livraria, situada à rua Sete de Setembro, no centro do Rio de Janeiro sofreria um atentado. Uma bomba colocada pelo Comando de Caça aos Comunistas- CCC foi detonada à sua porta causando grandes estragos.

Após o AI 5 e o recrudescimento da censura, a Editora Civilização Brasileira teve que mudar seu planejamento editorial. Não se limitou a este procedimento. Bruscamente foi compelida a se desfazer de um grande estoque de livros, alguns editados naquele ano. Os livros foram vendidos a preço de bananas. Em valores atuais ao equivalente a dois reais. Não fosse essa ousada e prejudicial iniciativa, certamente os livros teriam sido apreendidos pelos órgãos de repressão e retirados de circulação.

Melhor, então, disponibilizá-los a preço de banana.

Como leitor, beneficie-me desta queima de livros. Por preço irrisório tive acesso a enorme quantidade de livros e autores praticamente inacessíveis economicamente, entre eles Antonio Gramsci, Nelson Werneck Sodré, Leandro Konder.

Quarenta anos depois, ocorre uma corruptela deste estratégia. Novamente, acompanhando o crescimento do mercado editorial, investe-se em publicidade, na criação de novas redes de divulgação e de comercialização de livros. Sugere-se que livros sejam tão acessíveis quanto bananas. Contudo,  os livros na estão sendo vendidos a preços de banana.

A atual fome de ler poderia ser entendida pela lógica mercantil que impulsiona o desenvolvimento cultural. Neste contexto, o valor da cultura é aferido pelo movimento do caixa. Portanto, cultural torna-se todo produto que tenha valor mercantil. Que se adéque às motivações e às pulsões que animam a economia de mercado.

Ou seja, a cultura pulsante e prevalecente é aquela que adquire a forma de mercadoria. Que se torne visível, atraente e palatável. Que possa ser vendida, indistintamente, na internet, em bancas de revista ou em gôndolas de supermercados. É a cultura banalizada, que não se afirma pelo estímulo critico ou pela capacidade criativa, mas pela sua aptidão de se ajustar continuamente as novas tendências. Aquela que se presume inovadora porque se habilita a sofrer metamorfoses induzidas por estratégias de marketing. Sua virtualidade assenta-se na volatilidade, típica da moda, que lhe permite se adaptar rapidamente ao gosto de ocasião e às novas tendências do mercado. Estrategicamente, abstém-se de questionar, de induzir a reflexão e de instigar mudanças. Pretendendo-se inovadora sedimenta o conservantismo.

Tem como únicos intuitos agraciar o consumidor e proporcionar rendimentos pecuniários aqueles que a produzem. Para prover este propósito, não tira o sono. Busca entorpecer ou distrair. Esmera-se em atender caprichos e vaidades de consumidores. Enaltecer os seus vícios, deslizes e amenizar seus problemas.

A cultura fast food , avaliada pelo rendimento de caixa, ganha corpo em supermercados. Ocupa lugar de destaque em gôndolas e prateleiras, antes destinadas á comercialização dos chamados produtos de conveniências.

Uma rede como o Carrefour tem nos produtos culturais o segundo item de maior venda, superado apenas pelos produtos alimentícios. As megalojas obtêm lucro maior na venda de livros do que as livrarias, que devem ter um estoque mais ou menos amplo de livros e não apenas os mais vendidos.*

A estratégia seletiva contempla títulos e autores a partir de um único critério, a viabilidade mercantil. Não visa a difusão cultural. Incorpora-se á lógica dos supermercados como sinalização de ganhos. Da compra e venda acelerada, que aumenta a rapidez da circulação do capital.

Em consonância com a lógica que a  transformou num bem palatável, acessível apenas aos que tem poder de compra, tangível aos que não pensam e adequada aos interesses de ocasião, a cultura esteriliza-se. Converte-se num recurso meramente, num entretenimento passageiro e numa fonte de lucros da indústria cultural

A estratégia seletiva de novas editoras, articulada com o comércio eletrônico, grandes redes de venda e supermercados, caracteriza-se pela incorporação de novos bens de consumo, dando grande destaque aqueles que se destinam ao entretenimento.

Tem algo em comum com a estratégia da Civilização Brasileira na década de 1960. Mas se diferencia no essencial.

Vê os livros bens que devem ser acessíveis. Portanto, como bananas, colocadas em prateleiras de supermercados. Porém os livros não são vendidos a preços de bananas. Não pressupõem a leitura e a reflexão critica que alimentam a percepção critica da realidade e contribuem para a formação de uma visão mais abrangente do mundo e da sociedade.

Sedimenta a crescente a individualização das motivações literárias, centradas em best-sellers, confinadas nos limites do esoterismo, das receitas culinárias e das publicações de auto-ajuda.

Implica também na monopolização da cultura, abrigada e legitimada pela ideologia da globalização, que proclama a diversidade cultural e reproduz a mesmice.

 

 *Emir Sader, O controle da palavra. Caros Amigos, edição 117, fevereiro de 2007, p 43

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 24/08/2010