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Artigo - Nossa burrice, que nos alegra e nos ilumina

Wagner Braga Batista

 

Hoje nos reportaremos novamente a Mario Vianna, com dois ennes, o herói da burrice nativa e iluminada.

Mario Vianna, com dois ennes, era o Pelé da burrice futebolística. Enchia os olhos da plebe de brilho e fazia tresloucados torcedores verter água de tanto rir nas arquibancadas.

Com sua burrice generosa e universal eliminava barreiras sociais e possíveis constrangimentos de pobres e famintos. Socializava o riso. Graças à burrice sem esforço e sem ostentação,  arrancava delicadas e espontâneas gargalhadas de homens desdentados, que ainda tinham acesso aos estádios.

Hoje o Maracanã torna-se limitado. Logo na entrada os pobres e famintos são abordados. Nas bilheterias instituíram critérios de acesso. Nas roletas, pede-se atestado de riqueza, carteira de identidade e, a seguir, a dolorosa pergunta: O senhor tem todos os dentes?

E assim se forma cadastro dos torcedores desdentados. Depois da Copa de 2014, o futebol estará totalmente privatizado, entregue aos donos da CBF e do marketing esportivo. Desde já anunciam que pobre e desdentados estarão proibidos de ter acesso aos estádios.

Vil Teixeira, cada vez mais, apropria-se do futebol brasileiro. Depois de proibir a utilização do Maracanã, no segundo turno do campeonato, proibirá também os torcedores de terem acesso aos estádios.

Estarão proibidos de ser feios, de andar mal vestidos, com sapatos sem meias, sem dentes e rir nos estádios.  O marketing esportivo não permitirá a alegria e o riso de desdentados. Contratará homens esbeltos e mulheres vistosas para sorrir no interior dos estádios.

Neste tempo de opulência, discriminação e exclusão social, Mario Vianna, com dois ennes, o nosso herói da burrice iluminada, será possivelmente esquecido. Uma perda irreparável para os desdentados e para o patrimônio humorístico do futebol.

Sem temeridade, podemos dizer que Mario Vianna, com dois ennes, foi um brutamonte integralmente dedicado à burrice iluminada.

Este homem, misto de John Wayne e Arrelia, caprichava nos murros imaginários, aplicados em juízes ladrões e nas burrices arrancadas do nada.

Mario Vianna, com dois ennes, comentava jogos de futebol com seus tímpanos presos nas cordas vocais. Vociferava diretamente para os címbalos de ouvintes grupados em rádios rádios de pilha. Os ouvidos gritavam tanto que os címbalos estouravam dentro dos ouvidos.

Era um herói da nossa burrice, hoje tão desacreditada e desvalorizada.

Em Campina Grande também tivemos nossos heróis da burrice, que muito nos alegraram. Falavam dos calipsos nervosos, dos óvulos ululantes e dos esdrúxulos pululantes que saltitavam em oficinas da UFCG. Quando recordo de nossos ancestrais da burrice sinto o coração dilacerar. Bons tempos !

Tínhamos orgulho de nossas modestas burrices. Compartilhávamos generosamente todas elas, sem segredos e sem remorsos. Eram divididas harmoniosamente, sem disputas, sem vaidades e sem invejas. Sem plágios ou solicitação de direitos autorais. Ninguém queria surrupiar a burrice alheia, por mais culta ou científica que fosse.  Nenhum companheiro tinha a pretensão de ser mais estulto que o outro.

As nossas burrices alegravam povos famintos e contribuíam significativamente para o anedotário doméstico.  Eram tempos em que as burrices avultavam em panfletos, em longas e calorosas reuniões. As burrices sem vírgulas, sem acento e sem ressentimentos pontificam em férteis discussões. Começavam a brotar na montagem de pautas quilométricas  e não encerravam, nem após as conclusões. Varavam noites frias, em porões clandestinos e mesas de bares. Altas horas, batiam à porta de casas de amigos e, às vezes,  deslocavam-se sem diárias, a trabalho, para professar generosamente a burrice  em outros campi da UFPB.

Era uma burrice diligente, dedicada e despretensiosa. Irrigava conversas amistosas e cultivava amizades. Neste tempo a nossa burrice era socialista e socializada. Ao invés de rancor ou inveja, provocava alegria.

Hoje temos uma burrice ilustrada, uma burrice erudita e formatada. Institucionalizada pelos papers, pelas quitandas de monografias, dissertações e teses. Ressoa em tom pseudo moderno no discurso parnasiano do alto clero acadêmico e dos impolutos candidatos à hipocrisia.

Hoje as burrices solenes não se reivindicam dos lampejos e da gratuidade da burrice espontânea. Renegam suas raízes e suas virtudes para se encaixar devidamente em currículos de professores, avaliadores e doutores.

Hoje a burrice tem donos. É esmerada e burilada na língua culta e falada em outros idiomas. São burrices incompreensíveis que já não provocam riso, nem alegria. Utilizam-se da soberba, da empáfia, são tratadas de vossas excelências e datas venias. Intimidam e causam temor de rir.

Ditas em recintos reservados, são prerrogativas de poucos, que não se dão ao direito de partilhar burrices togadas, ilustradas e formatadas. As burrices solenes não cedem lugar às burrices modestas e iluminadas, que tanto nos alegravam .

São burrices esmeradas e sofisticadas que requerem o inglês, o francês e, até mesmo, o japonês. Tão refinadas, as burrices recusam-se a entrar em salas de aula. Dar suas aulas de burrices, humildemente, em português.

A burrice engalanada tomou conta de comitês científicos, de entidades de sábios, de fanáticos pesquisadores, de filósofos dos últimos quinze minutos, de pensadores das contas do mes, de comendadores e de desembargadores.   No entanto, para tristeza de todos, ao invés de risos e gargalhadas, causa desdouro e pesar.

Pois bem, houve um tempo em que a burrice era generosa e gratuita, não se sentia uma celebridade, nem exigia cachês ou títulos de PhD. Hoje temos uma burrice arrogante, prepotente, presunçosa, que se esconde na soberba para não dar vazão aos seus desvarios.

Cautelosa, requer normas, padrões e formatos rígidos para se expor. Mais, revela-se apenas a poucos acadêmicos e iniciados. Não se imiscui e nem compartilha a alegria da plebe e dos desdentados. Pouco acrescenta à originalidade da burrice nativa.  

É uma burrice globalizada, que se presume do primeiro mundo, importada, que nega suas raízes.  Pobre burrice, que não se vê aculturada e sem autenticidade.

Longe está da nossa prestimosa burrice iluminada. Da burrice encantadora de Mario Vianna, com dois ennes, que tanto nos alegrava.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 27/08/2010