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Artigo - A saga do professor substituto que queria ser dromedário

Wagner Braga Batista

 

De repente, surgiram aos montes nas universidades. Centenas, milhares, talvez. 

De onde vieram ?  Perguntávamo-nos.

Uns diziam tratar-se de um processo de geração espontânea, partenogênese ou algo assim. Outros, desconfiados, supunham que não. Pesquisaram e descobriram que o professor substituto não era fruto do acaso e tampouco uma verdadeira obra divina. Afiançaram, para tranqüilizar a comunidade acadêmica, que não tinha parte com o demo ou  era coisa do tinhoso. Isto porque se persignavam antes de assinar o contrato e se benziam ao pisar na universidade.

Quando examinados, revelavam-se homens e mulheres de índole salutar, ciosos de seus deveres, trabalhadores e de boa fé.

Na dúvida quanto à procedência e ante a falta de evidências consistentes, as investigações prosseguiram.

Pelo estudo do DNA, viram tratar-se de seres capazes de se reproduzir, dotados de inteligência, proativos, polivalentes e vocacionados ao magistério, porém a sua origem ainda continuava obscura.

Certo dia, lendo um jornal do século passado, um pesquisador defrontou-se com uma entrevista esclarecedora. Um semi-deus descera do Olimpo e falara com a imprensa. Graças a este relato do século passado, o pesquisador encontrou respostas convincentes sobre a origem dos substitutos.

Chamou seus pares, num misto de admiração, euforia e júbilo, para anunciar a descoberta.

O professor substituto, como tantos outros fatos estranhos do final do século, fora produto da arte mirabolante de um quase deus.

Informou a todos que um semi-deus exótico, migrara da Sorbonne para o Olimpo. Por meio de piruetas ganhara visibilidade e projeção nos céus. De súbito, dera uma cambalhota extravagante e pulara da esquerda para direita. Subitamente, transmutara-se. Abdicara da condição de o teórico de seitas acadêmicas e se tornara praticante de uma nova religião leiga vinculada à Igreja da Restauração Liberal.  Seus adeptos acreditavam piamente em mãos invisíveis, na supressão de direitos sociais, na desregulamentação das economias periféricas e na transferência do patrimônio publico para deuses de corporações privadas. Segundo a crença, os praticantes desta religião e destas alquimias transformar-se-iam em deuses do mercado.

E assim, o semi-deus exótico, tornara-se  EfeagaZeus.  Mas, para desconforto de outros habitantes do Olimpo, esse semi-deus vaidoso  queria criar um céu só para si.

Então, foi aos poucos destruindo e privatizando, um a um, todos os pilares do céu.

Recortava o céu para agraciar deuses mais poderosos, distribuía favores com extraterrestres e pedaços de firmamento com deuses das energias, da telefonia, de minérios e das oligarquias. Para os deuses reservava um bom pedaço do céu, para outros, absolutamente nada. Para justificar esta controversa reforma agrária nos céus, atribuía a ação a mãos invisíveis. Essas incríveis mãos arrancavam de pobres, de arraias miúdas, de Zé Ninguéns e de almas penadas todo e qualquer trocado. Sem eira, nem beira, subtraiam seus direitos e seus espaços troco de nada.

E as mãos invisíveis continuaram metendo a mão.  Esvaziavam aqui, cortavam lá. Minimizavam o Estado daqui para engordar os Estados de lá. Entregavam patrimônio daqui para valorizar o patrimônio de lá. Tiravam saúde pública dos Zé Ninguém e colocavam saúde e previdência privada acolá.

E as mãos invisíveis faziam tudo e ninguém havia para se cobrar. Loteavam hospitais do céu e fundos de pensão das almas. Sinalizavam cidadania, mas ofereciam pobreza e assimetrias. Falavam em padrões de vida e traziam lixo, bens descartáveis e consumo conspícuo.

Um dia as mãos invisíveis começaram a vender uma nova mercadoria que brotava no terreno de uma antiga oligarquia. Tratava-se de educação, até então um direito de todos, que as mãos invisíveis transformaram num grande negócio. Para uns rendia altos lucros, para outros um oneroso investimento. Para uns, simples promessas, para outros, ilusões do ensino pago.

E assim, esse semi-deus mirabolante, reduziu o céu a trapos e farrapos. O céu ficou em mal Estado e o Estado, endividado, pendurado num fio de barbante.

Mas o semi-deus mirabolante não se conteve e continuou sua façanha. Preocupado com críticas do povo pensante, instituiu um paradigma. Tratava-se de um novo relicário ou pensamento único que, segundo ele, serviria a todos. Era dotado de uma só matriz, um único modelo de conduta e um padrão irreversível de pensamento. Dizia que se prestava a tudo e a todos, valia para todos os povos, atendia a todas as crenças e, por ser de natureza divina, não poderia ser contestado.

Com o passar dos tempos, os Zé Ninguéns e as arraias miúdas perceberam que o relicário não prestava pra nada. Tinha apenas uma função. Servia à arte da enganação.

E assim, um a um, os pilares céu e os pedaços da periferia foram sendo entregues aos deuses das corporações e aos senhores das oligarquias.

Por fim, o semi-deus mirabolante queria criar uma universidade que também não prestasse para nada e não ofuscasse seu brilho. Uma universidade onde não houvesse ser pensante. Assim foi minando e privatizando, vendendo, loteando e entregando,até que por fim pouco havia. As universidades atrofiaram e quase não mais existiam.

Um dia, para tapar um grande buraco que se formou, criou uma fantasia. Criou centros de excelência, com um balcão de negócios na entrada, onde tudo se comercializava.  Vendia cursos de especialização por trinta moedas, educação aligeirada à prestação e certificados a preços de ocasião.

Mas aos poucos, EfeagaZeus foi perdendo o prestígio, a visibilidade e a compostura. Dedicava-se a causas menores, a intrigas e a picuinhas. Deu para apostar no jogo do bicho, retaliar o povo do Itamarati e prejudicar seus colegas de academia. Foi perdendo lugar no Olimpo e aos poucos se desmilinguia.

Mas antes deste desfecho, para aumentar o desmantelo, chamou aposentados de vagabundos, mandou prender professores em cadeiras de rodas ou lançá-los no sistema previdenciário falido. O semi-deus mirabolante também estabeleceu que as universidades não poderiam contratar mais professores. Por fim, para avacalhar definitivamente a universidade pública e a carreira docente criou uma anomalia chamada substituto.

As universidades deveriam se servir de substitutos. E os pobres substitutos servir-se de coisa alguma. Não poderiam aspirar, respirar, reclamar  ou sequer choramingar. Caberia a eles, como diz o atributo, apenas substituir.

O substituto deveria carregar dez toneladas de pedras vinte duas horas por dia. Nas duas horas restantes ocupar-se-ia de limpar quadros negros, o chão das salas de aula e os pátios da escola. Estaria terminantemente proibido de dormir. Só poderia descansar quando seu contrato temporário de dois anos expirasse, suas energias minguassem e não pudesse sequer ficar em pé.

Até lá, não poderia comer ou beber. Para assegurar esta obrigação não receberia salário. Teria apenas uma pequena bonificação por serviços prestados. Ganharia dez pratas por mês, uma meia sola de sapatos, uma caixa de giz, um apagador e a indicação da porta de saída ao final do serviço.

Nos domingos e feriados correria 302 quilômetros em dez minutos. Aquele que não cumprisse esta meta, uma vez avaliado, deixaria de ser substituto. 

Nos dias santos e santificados, teria duas opções. Poderia ficar grudado como chicletes no quadro-negro ou pendurado, igual a um morcego, no teto das salas de aula. Deveria ministrar quinze disciplinas num semestre letivo e nunca aspirar outro objetivo.

O substituto seria tratado como menino buchudo, sem perdão ou indulto. Se atrasasse algum minuto ou faltasse alguma das quarenta e duas aulas diárias, ficaria trancado num quarto escuro ou no canto da sala, de joelhos sobre caroços de milho.

O substituto deveria demonstrar inaptidão e talento para nenhuma vocação. Sua única função seria  substituir. Não poderia reivindicar direitos, uma vez que não os detinha. Nem invocar benefícios, posto que não os teria. Tampouco aspirar à capacitação e à ascensão, já que não tinha uma profissão. Tinha, apenas, uma ocupação: substituir.

Não poderia, portanto,  ver-se como professor, porque fora contratado para ser um vapt-vupt ou um zigue-zague, eufemisticamente chamado substituto.

Um dia, no entanto, surgiu um substituto com vocação. Queria ser professor, como não podia , começou a comer grama e declarou que, a partir de então, seria dromedário.

Num shopping em São Paulo comprou uma corcova, um estômago dilatado, um beiço com botox, um pescoço recauchutado, duas orelhas felpudas e quatro patas surradas. Importou da Líbia um óculos escuro, um turbante e uma carteira de identidade de dromedário.

Deste dia em diante, devidamente identificado e vestido de dromedário, dava suas 42 duas aulas diárias. Corria 302 Km em dez minutos e ficava grudado no quadro negro à caráter.

Trajado de dromedário, sentia-se como pobre ruminante e já não queria ser outra coisa.

Com uma corcova monumental, uma pança robusta, duas orelhas felpudas, um beiço proeminente e uma enorme língua à mostra, o professor vocacionado, devidamente identificado, convencia-se de que, nesta estória das Arábias, melhor do que ser substituto, era ser mesmo dromedário.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 03/09/2010