topo_cabecalho
Artigo - O grande acontecimento histórico do dia 29 de setembro de 2010

Wagner Braga Batista

 

 

Comprometidos com o futuro do socialismo, permanecíamos profundamente envolvidos com o incessante colóquio sobre a salvação do mundo.

 

Depois de submetidos às mais duras provações ao final do século passado, enfrentávamos um sério dilema e atados ao indeclinável desafio: como salvar o mundo?

 

Nesta árdua missão, a quem recorrer? A que forças motrizes da História poderíamos apelar diante destas críticas e desconfortáveis circunstâncias? O que forneceria élan neste messiânico esforço de salvaguardar a humanidade e o mundo da perdição que se anuncia ? Seriam a mística e o poder das orações ou a perseverança revolucionária e a pujança do proletariado?

 

Após três noites sem dormir, tomados por esta penosa dúvida e angustiante reflexão, ainda não víamos a luz no fim do túnel.

 

Auscultávamos profetas do passado e arautos do dia seguinte, mas não havia respostas. Esta incessante interlocução roubara-nos o sono e a percepção do momento presente.

 

Tal era o envolvimento com a missão messiânica, que não nos déramos conta de que se aproximava a hora fatídica. Faltavam apenas duas horas e quarenta e dois minutos para um novo desfecho histórico. Hesitantes não sabíamos se nos defrontaríamos com o juízo final, o apocalipse, um dilúvio, um cataclismo, o perdão de nossos pecados, a redenção de nossas almas, a revolução proletária ou a décima quinta vitória do Fluminense.

 

Uma grande convulsão social estava prestes a acontecer. E em poucos segundos, para aplacar minha ansiedade, tomei ciência de que abalaria os pilares do Estádio da Cidadania, em Volta Redonda.

 

Desesperado, abri os olhos, a porta do gabinete e pulei para as ruas da História. Queria ver com meus próprios olhos, dar o testemunho às futuras gerações do grande acontecimento anunciado.

 

No mundo globalizado, grandes acontecimentos nunca ocorrem no quintal de casa, na rua ao lado, aqui, ali ou acolá. Ocorrem em Nova Iorque, em Londres, em Paris ou em Shangri-la á. Então, peguei o primeiro ônibus e parti para o aeroporto.

 

Ao chegar à longa Avenida Assis Chateaubriand havia barreiras, emboscadas e um intransponível congestionamento. Candidatos afoitos, de todos os tipos, queriam ganhar algum trocado. Devoravam o pavimento das ruas, estouravam tubulações hidráulicas, construíam escolas e hospitais em três minutos, ofereciam olhos e dentes para eleitores. Neste grande mercado de votos, enfiavam moedas em suas bocas e se atropelavam uns aos outros.

 

No mercado, havia candidatos para todas ofertas e preços. Havia candidatos fujões que pretendiam ficar amarrados ao governo. Candidatos esbeltos que queriam se ver em programas eleitorais, mas não eram vistos em sessões na Câmara. Filhotes de raposas velhas vestidos em peles de cordeiro. Velhas raposas fêmeas disfarçadas de arabaianas, dançando xotes e maracatus nas telas das TVs.

Cabos eleitorais denunciavam patrões caloteiros e locutores de rádio vendiam dinheiro. Capoeiristas indignados, reclamavam de pernadas que lhes tinham sido furtadas por candidatos coligados.

 

Por ordem de Vil Teixeira, a Avenida Assis Chateaubriand, assim como a Maracanã, tinha sido interditada para se transformar neste grande mercado. Ou melhor, interditada para se converter em nada.

 

Milhões de torcedores do Fluminense, em Campina Grande, estavam quatro vezes prejudicados prejudicados. Tinham dificuldades de votar, estavam impedidos de se locomover, de chegar ao aeroporto e de torcer pelo futuro campeão brasileiro.

 

Agora faltavam apenas duas horas e quinze segundos para o grande acontecimento.

 

Sôfrego, com o coração nas mãos, desci do ônibus e numa corrida desabalada cheguei ao aeroporto. Para meu alento, avistei uma nave remanescente da Panair, que resistia bravamente nas pistas do Aeroporto João Suassuna, Numa deferência do piloto e da tripulação, aguardaram trinta minutos pela chegada da imensa torcida tricolor de Campina Grande.

 

Enquanto isto, imensas filas de passageiros pedintes, pobres e esfomeados se formava no hall do aeroporto. Cidadãos brasileiros, mulheres gestantes, crianças de colo, idosos e cadeirantes viam-se duramente humilhados. Em nome da liberdade de ir e vir eram interpelados e revistados por lacaios de Bush, fantoches de Margareth Teatcher e  vassalos de Tony Blair que desenvolviam ações preventivas a favor do terrorismo do mercado.

 

Assim como Vil Teixeira interditava estádios, essa canalha prepotente truncava o trânsito em todos aeroportos do mundo. Achincalhava humildes passageiros com perguntas sem nexo.

 

Homens, mulheres e crianças tinham que preencher extensos formulários, subir em paus de arara para responder dolorosos interrogatórios e, se liberados fossem, poderiam seguir adiante.

Mais uma vez, a tripulação da Panair, quando faltava uma hora e vinte e dois minutos para o inicio da partida, percebendo a dramática situação da torcida tricolor, abriu a porta dos fundos da aeronave.

 

Eram tantos tricolores que alguns tiveram que se alojar sobre as asas. Confiantes de que chegaríamos à cidade criada para homenagear Conca , o jogador de aço, os heróis da luta pela nacionalização do petróleo, os milhares de trabalhadores da Fabrica Nacional de Motores e os operários demitidos da Companhia Siderúrgica Brasileira, privatizada por FHC, acomodamo-nos no vôo da vitória rumo à Cidade do Aço.

 

Embriagados pelo nacionalismo-estatizante, convictos de nosso dever cívico e delirante, respiramos aliviados porque chegaríamos em dezessete minutos à Volta Redonda.

 

No entanto, a baixa temperatura das altitudes congelava a todos que ficaram sobre as asas. Temerosos de que pés frios comprometessem o resultado da partida, fizemos escala em Maceió e em Salvador para que se aquecessem no calor das praias. Este atraso imprevisto, comunicado aos locutores de futebol de Volta Redonda foi divulgados em todos rádios de pilha. Dentro de poucos minutos um enorme  DC3 da Panair sobrevoaria o estádio.

 

Dos céus, descortinávamos o horizonte socialista de Volta Redonda, com colossais estandartes vermelhos e chuteiras flamejantes de operários demitidos da Fabrica Nacional de Motores e Companhia Siderúrgica Nacional.

 

Dos céus víamos o estádio com seu manto verde totalmente iluminado. A multidão aguardava a chegada do DC3 da Panair para dar inicio à grande manifestação pública contra a privatização do Brasil e a marginalização de torcedores nos estádios.

 

Ansiosos, não sabíamos o que fazer. Estávamos no céu, quando queríamos estar com pés no chão.  Como simples cidadãos brasileiros, queríamos apenas estar sentados no estádio da cidadania. Mas reconhecíamos, com jubilo, que o time do Fluminense, sem soberba, vaidade ou privilégios pisava o céu ao entrar no gramado.

 

Das alturas, não sabíamos que fazer. O jogo iria começar e ainda estávamos voando. Foi então que numa deferência do Divino, um enorme Zepellin, acompanhado por anjos negros e goleiros alados, recolheu nos céus de Volta Redonda a torcida tricolor de Campina Grande. Várias gerações postadas nas asas da Panair teriam o merecido lugar no Estádio da Cidadania.

 

Faltando 43 segundos para o inicio do jogo, o estádio estava totalmente lotado.

 

Quando trilou o apito, o jogo poderia ser encerrado. Teríamos evitado sacrifícios inúteis, cabelos arrancados, unhas roídas, delírios e tremores, gritos desesperados e poupado a senhora mãe do juiz durante noventa minutos.

 

No inicio do jogo, todos sabíamos qual seria o resultado. Contudo sofremos com o desmantelo do zagueiro adversário que joga em nosso time e tantos gols desperdiçados. Mas para cumprir a sina do grande acontecimento, que seria desvelado, aos 37 minutos do segundo tempo estava sacramentada a décima quinta vitória do futuro campeão brasileiro.

 

Menos ansiosos e mais moderados, fomos levados a admitir que o mundo não ruíra, não fora salvo e pouco havia mudado. Mas o Fluminense, naquele dia 29 de outubro, seguia adiante como líder absoluto do campeonato.   

 

Enquanto isto em São Paulo, movido por forças do além, outro grande acontecimento rolava.

Quase ao final do jogo, o técnico Joel Santana levantou as mãos para o céu. Com quase três séculos de futebol rodados, tivera uma surpreendente revelação, após um gol anulado. Recebia irrefutáveis eflúvios do além e demonstrações do inacreditável.

 

Naquele momento indescritível todos se ajoelharam no estádio. Torcedores do Botafogo convenciam-se de que, jogando contra o Corinthians, sempre há forças do além que atuam do outro lado.

Entre tantos gols perdidos e roubados, o  Botafogo vencera o Corinthians por cinco a um,  porém, o juiz da partida consignou outro resultado.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 30/09/2010