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Artigo - O roçado da CBF ou porque me transformei em camelô educacional de mim mesmo

Wagner Braga Batista

 

Perguntei aos meus colegas do Departamento de Ciências Atmosféricas:

 

Como é possível chover tanto num só roçado?

 

Toda a água que não caía na saúde, na educação, no transporte, na habitação e na segurança pública, chovia tão somente naquele pequeno roçado. 

 

Não se sabe como, mas chovia demais naquele roçado.

 

Choviam malas pretas e malas brancas. Dólares e euros caiam na torrente de água que vinha dos céus. E o pobre lavrador, que era apenas um investidor da bolsa de valores e um dia herdou de seu sogro aquela pequena gleba de terra onde só nasciam pregos, espinhos e maracutaias, sentia-se bafejado pela fortuna.

 

O diligente lavrador que sempre se negou ao trafico político, que altivamente recusou verbas publicas para seu roçado, viu cair do subitamente dos céus rios de dinheiro da Nike, da Bhrama, da Antártica, da Gilette, da TAM, da Vivo, de produtos contaminados da Nestlé, do Itau e tantas entidades filantrópicas que queriam auxiliar o diligente agricultor.

 

Compadecido, o governo não ficou atrás. Solicitou aos céus que despejasse sobre aquele rincão frutíferos editais e pencas de isenções fiscais. Tanta água assim, certamente, provinha da transposição de rios de cofres públicos ou do caudaloso erário do São Francisco.

 

Então, depois que tomei conhecimento do tanto que chovia no roçado da CBF, abri mão de outras vocações menos promissoras e quis ser lavrador.

 

Atônito ante o elevado índice pluviométrico de recursos públicos que caia neste lavrado, abdiquei de veleidades intelectuais  e quis calejar a mão na enxada. A água era tanta, que a chuva que chovia naquele roçado superava o parco gotejamento de investimentos em áreas urbanas e setores públicos básicos.

 

Tomei uma decisão:

 

Ao invés de ser um campeão da livre iniciativa, vou dedicar-me integralmente ao meio rural, ao campesinato e a cultura agrícola. Vou abrir um roçado no terreno vizinho à CBF.

 

Pensei alto:

Talvez, uma babinha desta profícua chuva respingue no meu roçado.

 

No entanto, ao buscar minha carteirinha de roçadista, num cartório ou sinecura da CBF, dei-me conta que a desregulamentação da economia só vale para uns. Assim como moeda pública correndo ladeira, a grana só desce numa direção. Havia uma infinidade de exigências e requisitos para que pudesse me tornar um roçadista, vizinho à CBF.

 

Asseverou-me o chefe de quarteirão da sinecura:

Aqui todos seguem a lei.

 

Em nome da probidade e do tráfico de influência idôneo, também deveria seguir a lei.

 

Como homens conscienciosos e verdadeiros liberais, ofereceram-me várias opções e o direito de escolha frente ao caminho a seguir.

 

Atentamente, ouvi as ponderações, preleções e o rumo do caminho das pedras.

 

Disseram-me que teria que me tornar sócio do Congresso ou acionista do judiciário. Poderia, alternativamente, ser comensal do camarada Lula, mensaleiro em Brasília ou Presidente do Corinthians. Deveria abrir três livres acessos a paraísos fiscais, ser dono de pelo menos dois times de futebol e procurador de quatrocentos e noventa e dois jogadores. Porém seria imprescindível o patrocínio de empresas eticamente responsáveis, de financistas a favor do desenvolvimento sustentável e a manutenção de três ecossenhoras. Estas jovens teriam que calcar chuteiras, ter vencido três testes de DNA e know how de penduras em quinze contas bancárias.

 

Cumpridas estas exigências de preliminares de praxe, deveria atender às normas especificas que dispõem sobre a personalidade e a falta de caráter. Deveria assegurar que consegui subornas agentes do fisco, policiais de delegacias especializadas, que corrompi três árbitros de futebol e não coloquei nenhum jogador no bom caminho. Isto feito, apresentaria uma declaração reconhecida em cartório de que não sou imune a fraudes, a acordos de bastidores, a golpes de mão, que estaria apto a ser acionista do Comitê Organizador Local da Copa, predisposto a abocanhar os lucros do evento e  jamais, em hipótese alguma, recusar uma pequena uma fatia de pelo menos 900 milhões de reais de dinheiro público destinados a esta instituição privada.

 

Não bastasse isto, deveria apresentar um teste de compatibilidade com o genoma da FIFA, comprovar que usei brincos e gel nos cabelos durante a última Copa e privei com Lady Di.   Para finalizar, teria que carregar um ministro do esporte no bolso, demolir e vender lotes do Maracanã, construir dez estádios monumentais, que não deixassem brecha para o ingresso de ingresso de pobres, feios, negros e homossexuais, além de criar o marketing de um novo país, chamado Soccer Brazil, para que ingleses vissem e se sentissem agraciados por pelos menos cinco minutos.

 

Frustrado em minhas ambições ruralistas, reorganizei meus planos de vida.

Convenci-me, então, que ao invés de ser um simples roçadista, vizinho da CBF, deveria ousar. Ser o arrojado paladino da livre iniciativa que não se dobra ante seus concorrentes, nem se deixa abater pelos reveses de pretensões no mundo agrário da CBF.

 Coloquei terno e gravata e me vi como um agente da destruição criativa, um emulo da inovação tecnológica, uma força motriz da competitividade, um self made man e um autentico empreendedor arrojado. Ou melhor, no chulo,  camelô de mim mesmo.

Porém, faltava o diploma de camelô.

 

Como primeiro passo, dirigi-me à quitanda da quitanda da esquina. Em tempos de liberalismo e certificação, tudo se negocia.

Depois que democratizaram o ensino, aprender ficou fácil demais. Aprendi que juntamente com hortifrutigranjeiros também poderia adquirir certificados do novo, moderníssimo e atualíssimo curso de camelô de mim mesmo.

 

Segui os passos de empresários comercialmente responsáveis e me inspirei nos desbravadores do ensino pago que nos ofereciam cursos B e cursos A  a módicos preços. Segui em frente, não me arrependendo de abandonar as lides do roçadismo da CBF.

Graças a FHC, Paulo Renato e proficientes corporações transnacionais, poderia escolher entre o curso B e o curso A. Agora todos poderiam sacar dinheiro do bolso, plantar capital humano e colher certificados de PhDeuses em menos de três semanas e duas horas de empreendedorismo.

 

Convenci-me de que poderia migrar sem riscos do campo das negociatas éticas para o promissor terreno dos negócios escusos com ensino pago seguramente sustentável.

 

Por uma módica quantia, paga no caixa, na baixa, no cartão de crédito, em débito ou por meio da conta abstenção, os indicadores de acesso ao ensino superior subiam vertiginosamente. Somados à bolsa vacância, todos estes prodigiosos mecanismos transferiam recursos públicos para cobrir vagas ociosas, o rombo ou a deficiente qualidade de instituições de ensino privado.

Neste embalo, paguei o justo preço  por um certificado de EMErDeA adquirido num supermercado em Cochichola. , Sem sombra de dúvida, transformei-me um player, um agenciador de negócios ou gestor de mim mesmo.

 

As preciosas aulas à distância de instituições de ensino e de professores, foram bastante esclarecedoras para viabilizar o meu negócio. Assim tornei-me um empresário do ensino privado.

 

Aprendi a arte de ludibriar, de dissimular, de gerar falsos apelos humanitários, de extrair dividendos de propaganda enganosa, de proclamar compromissos com a educação rebaixando-a no dia a dia  e  a não ter escrúpulos na administração deste negócio.

O grande negócio, muitas vezes empreendidos com direitos sociais de professores esquecidos nas gavetas de meus diretores , com dinheiro de encargos subtraídos de meus estimados e assalariados colaboradores, com recursos sonegados ao erário, com débitos do FGTS e da Previdência, com a desqualificação de incautos estudantes, com lobbies para protestar sobre a aferição de planilhas para aumento de taxas e reclamar d o elevado peso da carga tributária, que paradoxalmente incide sobre populações de baixa renda.

 

Graças a esta mis em cene,  ganhei uma teta exclusiva para mamar, um cala a boca e uma cadeira cativa no círculo dos filantropos  e homens de bem bem intencionados .

 

Não se sabe como, de repente começou a chover no meu quintal.

 

Caiam cotas de participação em ações que não tinha adquirido, royalties pelo que não fiz, propinas pelo cala boca e pelo que me deixam falar, isenções fiscais, bolsas empresários, anistia de débitos públicos, assento em conselhos educacionais, terrenos para ampliação do negócio com o ensino, garantia de pagamento dos inadimplentes, helicóptero para levar aos céus os preços das mensalidades e a certeza de que, brevemente, seria reconhecido como catedrático da Universidade da FIFA, membro honorifico, cidadão cinco estrelas e Conselheiro Vitalício do Colendo Colegiado Mor dos Plantadores de Maracutaias nos cobiçados roçados da CBF.

 

Afinal, não se pode conceber a Copa do Mundo, no Brasil, dissociada da educação e da cidadania.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 23/11/2010