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Trote na berlinda

Essência do ritual pode ter se perdido, mas integração ainda é necessária

 

Diante das imagens de jovens alegres com rostos sujos de tinta e cabelos raspados após a divulgação das listas de aprovados no vestibular no começo do ano, recomeça a discussão sobre a validade do trote como ritual de passagem. Como os relatos de abusos e humilhações parecem a cada ano mais graves, surge a dúvida se essa é a melhor forma de recepcionar os calouros.

 

Alguns universitários concordam que o ritual perdeu a sua essência, mas sabem que é necessário algum tipo de integração. Autor da tese de livre-docência Anatomia do Trote Universitário, Antonio Ribeiro de Almeida Júnior discorda que a atividade integra. "É um exercício de obediência irracional. Fica um clima de hostilidade, é seriamente destrutivo", afirma ele, que defende a extinção da brincadeira em todos os níveis, inclusive o trote solidário.

 

"Perdeu-se o foco de alegria. É preciso achar o meio do caminho, uma festa saudável", diz o psicólogo Fernando Elias José, que acha a solução do trote solidário paliativa, pois não resolve a violência que explode durante as brincadeiras com os calouros.

 

"Trote solidário não existe. De dia, é solidário e à noite é o tradicional", endossa Almeida Júnior.  "Para estudar o trote é preciso estudar a sua instituição. E além da instituição universitária não gostar de crítica, seus membros não querem se indispor com ela", explica ele, que é professor de sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em Piracicaba, reconhecido por ter um dos rituais mais tradicionais do País.

 

Considerado por muitos um rito de passagem, o trote tem como proposta original integrar pessoas que não se conhecem e que passarão os próximos anos convivendo muito proximamente.

 

"Deveria ser apenas um jogo com a emoção do aluno novo entrando e a integração dele na faculdade. O veterano não tem que usar a coação, mas sim a alegria do bixo por estar entrando num lugar como a USP", defende Alessandro Chioatto, de 29 anos, engenheiro ambiental graduado pela escola Politécnica e entusiasta do ritual.

 

Veterinária formada pela Anhembi Morumbi, Janaína dos Reis, de 29 anos, lembra de sua recepção pelos veteranos como uma situação divertida. "Fizemos pedágio, mas antes pintaram o rosto e cortaram o cabelo dos meninos. Depois bebemos num boteco e tivemos de dançar na boquinha da garrafa e surfar no asfalto, esses 'micos' básicos. Mas não foi pesado ou agressivo", ressalta.

 

A cada nova lista de aprovados e dias de matrícula, pintam em todo o País dezenas de casos de exageros por parte dos alunos mais velhos. Em Campo Grande, na antiga Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (Uniderp), hoje Uni Anhanguera, novos alunos de Veterinária eram obrigados a entrar em bretes (corredores por onde passa o gado para tomar vacina) e ali eram alvo de ovos, farinha e criolina, levando alguns ao hospital com reações alérgicas.

 

"Faziam os meninos comerem ovos, cuspir e passa adiante, mas disso eu escapei. Também teve uma piscina de esterco. Vi os que não queriam, mas acabavam indo, cedendo por pressão maior", relembra Ligia Leite Mascarenhas, hoje com 31 anos.

 

"Sempre tinha um ou outro idiota que exagerava, não sabia como interagir com o bixo", relembra Chioatto, mais conhecido como Montanha na faculdade. Mesmo sendo a favor do trote, como veterano sempre se posicionou pelo livre arbítrio do calouro. "Se não quer ir, não vai. Coitado dele, que não vai ter histórias para contar na vida".

 

Desde a morte do calouro de Medicina da USP Edison Hsueh, em 1999, amplamente divulgada pela mídia, foram ficando claros os excessos por parte de veterano em todo o País. "Acabou-se perdendo o foco de alegria, das pessoas serem parabenizadas. Não é mais uma gratificação pelo fato de elas terem se esforçado, mas uma punição", frisa o psicólogo Fernando Elias José, que há doze anos trabalha com preparação para provas e concursos.

 

Visando banir a imagem de ritual 'do mal', e resgatar o propósito integrador original, surgiu o trote solidário, ajudando instituições ou passando adiante ideias positivas.

 

"A intenção é desmistificar imagem violenta do trote de rua, tradicional. Despertar nos calouros a noção da coletividade e cidadania, de forma consciente e sem abusos. O trote não deixa de existir. A gente corta o cabelo, pinta, mas tudo se a pessoa quiser, ninguém é obrigado a nada", conta Mariana Demarqui, de 19 anos, do 3º ano de Administração de Empresas e membro da PUC Júnior, empresa incubadora que organiza o Trote Solidário na instituição.

 

No fim do dia acontece uma cervejada em um local distante do campus, mas com apoio de uma ambulância. Em 2010, o folder distribuído pelos bixos aos motoristas nos semáforos foi impresso em papel semente (que pode ser picado e plantado) e a celebração reuniu 350 alunos.

 

No Insper (ex-Ibmec), além das atividades normais de integração, os calouros de administração e economia do são responsáveis pela gestão de um lava-rápido, com a obrigação de divulgar o serviço na região do campus, captar clientes, lavar e entregar carros em perfeitas condições. A ideia do "lava-rápido por um dia" é promover uma experiência real de gestão de um negócio, em meio às atividades de integração da semana.

 

"Para esta edição, estamos pensando em estipular metas para incentivar os calouros, a exemplo do que acontece nas empresas", afirma Amanda Vilar Yamao, presidente do Diretório Acadêmico do instituto e responsável pelas gincanas na semana de boas vindas.

 

Entre todas as polêmicas, achar um meio do caminho, uma maneira de fazer uma festa saudável, parece ser o maior desafio do trote. "Não precisa ter passado no vestibular para fazer ser solidário, precisa sim aproveitar cada momento e cada situação, mas é nesse momento que as pessoas perdem o limite", diz Fernando José.

 

Apesar de organizar o trote solidário na PUC, Mariana não teve nada de inspirador no seu. "Os veteranos me pegaram assim que desci do ônibus. Fui forçada a tomar uma pinga de garrafa de plástico, que é desumano com qualquer pessoa", recorda.

 

Ela também foi bombardeada por farinha e ketchup no cabelo. Mesmo assim, consegue ver um ponto positivo. "Minha cabeça parecia um capacete de tão duro que ficou tudo. No final do trote conheci meninas que hoje são minhas melhores amigas."

 

(Estadão)


Data: 09/02/2011