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Artigo - História e poder nas páginas de um jornal: 1971/2011

Luciano Mendonça de Lima

 

A trajetória de um jornal ajuda a iluminar a história do lugar que o viu nascer e se desenvolver. Do mesmo modo, a compreensão desta trajetória só se torna minimamente inteligível se inserirmos o mesmo no contexto que o viu emergir e florescer. É desta dialética histórica que trata este artigo, ao destacar os 40 anos de existência do “Jornal da Paraíba’ e sua importância para a história de nosso Estado, em especial do município de Campina Grande.

 

Quando foi fundado o Jornal da Paraíba dava continuidade a uma história que remontava à quase um século. Pois foi com a publicação do primeiro número da “Gazeta do Sertão” (semanário editado pelo bacharel Irenêo Joffily e o engenheiro Francisco Soares Retumba) em 01 de setembro de 1888 que tinha inicio a história da imprensa em Campina Grande.  Com o subtítulo “Órgão Democrático”, o periódico e seus articuladores se envolveram profundamente com as questões de seu tempo, a exemplo da luta pelo fim da escravidão e a batalha pela implantação do regime republicano em substituição a um Império político carcomido pelas contradições de época. Por conta deste engajamento seus proprietários pagaram um preço alto, pois com a ascensão ao poder em âmbito local e estadual das forças hegemônicas no novo arranjo político, o jornal teve um fim melancólico em 1891, ao ser empastelado pelos correligionários locais de Venâncio Neiva, então presidente do Estado. Outros hebdomadários que surgiram na seara da “Gazeta do Sertão” no final do século XIX também tiveram vida curta, tais como “O Alfinete”, “O Tempo”, “O Campinense” e a “A Gazetinha”. Aliás, a efemeridade parece ser um traço caracterizador não só das primeiras publicações que constituem a aurora da imprensa em Campina Grande, pois acompanhou a história dos nossos periódicos pelo século seguinte, como “O Prelúdio”, “O Campina Grande”, “O 15 de Novembro”, “A Razão”, “A Voz da Borborema”, “Evolução”, “Tribuna de Campina”, “Edição Extra”, dentre outros. Contudo, tivemos exceções que foram se multiplicando com o tempo. Este parece ter sido o caso do jornal “Correio de Campina”, fundado em 1911 pela principal liderança política de Campina Grande e arquiinimigo de Irenêo Joffily, o dinamarquês Cristiano Lauritzen, tendo circulado até o ano de 1932.

 

Entretanto, quando o “Jornal da Paraíba” surgiu esta fase artesanal da imprensa campinense havia ficado para trás. Quando este apareceu, ao contrário, o momento era outro. A história da imprensa e do jornalismo brasileiro já havia entrado na moderna era empresarial, capitalista, cujo exemplo local mais patente era o “Diário da Borborema”, órgão pertencente aos Diários Associados, de propriedade do paraibano Assis Chateaubriand, que começou a circular no município em 02 de outubro de 1957 e haveria de ser o seu maior concorrente desde então.

 

Embora difira em muitos aspectos dos matutinos que o antecederam desde o final do século XIX até meados do século passado, jornais como o DB e o JP têm algo em comum com os seus antepassados: um  certo ethos histórico e cultural caracterizador da cidade e seu povo.

 

Segundo esta perspectiva, Campina Grande seria dotada de uma espécie de “destino manifesto.” Embora em alguns autores estes traços remontem a tempos imemoriais, o problema foi formulado pela primeira vez nas páginas da “Gazeta do Sertão” por Irenêo Joffily, conforme podemos depreender do trecho abaixo:

 

“O qualificativo de grande-, que tem esta cidade, tem sido até hoje somente uma aspiração; faz-se preciso que a nossa administração municipal o torne uma realidade, empregando todos os meios ao seu alcance.” (GS-01/03/1889).

 

O que no final do século XIX era apenas uma sugestão (talvez pelos limites que as condições históricas de época impunham), se transformou em projeto articulado pelas elites intelectuais e política da cidade na primeira metade do século seguinte, especialmente entre os anos 1930/1940, que coincide com as transformações materiais e imateriais resultantes da riqueza gerada pelo “ouro branco”. É neste momento que uma série de epítetos grandiloqüentes passa a ser associado à imagem de Campina Grande: a capital do trabalho; a cidade que mais cresce no interior do norte e nordeste do Brasil, com um povo trabalhador e ordeiro. Enfim, nascia assim o mito fundador da “Rainha da Borborema”.

 

Apesar de apresentar sinais de esgotamento na segunda metade do século, este imaginário foi redimensionado especialmente depois do golpe de 1964, que dentre outras coisas, se caracterizou por ressuscitar um ufanismo exacerbado em torno do Brasil. Em algumas edições do JP, especialmente por ocasião do aniversário da cidade no mês de outubro, esta imagem do passado da cidade é resignificada à luz do presente com projeção para o futuro. Em 10/10/1971, por exemplo, a propósito dos 107 anos de emancipação política de Campina Grande, essa questão é tematizada. Embora reconheça que os tempos da “Liverpool brasileira” não fossem mais os mesmos de décadas atrás, o articulista acredita que a promessa de realização trazida pelos novos ventos, combinando industrialização com a emergência de uma elite dirigente local renovada, poderia propiciar um novo ciclo de desenvolvimento e despertar o “espírito empreendedor do campinense”.

 

Quando o primeiro exemplar hoje histórico do “Jornal da Paraíba” veio à luz naquela manhã de 05 de setembro de 1971 o Brasil vivia um dos períodos mais sombrios de sua história. Nove anos antes, um movimento preventivo articulado por poderosas forças econômicas, sociais, políticas e intelectuais das elites brasileiras dirigido pelas forças armadas derrubou violentamente o então presidente constitucionalmente eleito João Goulart. Com o golpe civil-militar de 01 de abril de 1964, foi se implantando paulatinamente (não sem contradições e idas e vindas) um regime que combinou perversamente terrorismo de Estado contra as diferentes forças de oposição e altas taxas de crescimento econômico em favor do grande capital nacional e internacional. O auge deste processo se deu justamente no governo do General-Ditador Emílio Garrastazu Médici, entre 1969/1974. Esta nova realidade histórica teve desdobramentos profundos em todas as dimensões do Estado e da sociedade brasileira, inclusive na relação do poder central com as forças locais de cada município da federação.

 

Em 1971 Campina Grande contava com uma população de, aproximadamente, 196.000 habitantes, majoritariamente residindo em seu núcleo urbano. O município era administrado pelo interventor Luiz Motta Filho, membro de tradicional família local, indicado para ocupar o cargo de prefeito pelos militares após a cassação de Ronaldo Cunha Lima em 1969. Em termos econômico-sociais, já ia longo o tempo em que a cidade se destacava como centro de projeção regional, derivado em grande medida pela riqueza produzida pelo algodão e pela sua condição de empório comercial. Dos anos sessenta em diante, a esperança era de que a crise fosse superada com um novo surto de desenvolvimento representado pela industrialização, na medida em que as fábricas do centro-sul e até de outros países fossem sendo atraídas para o seu distrito industrial, alimentadas pelos subsídios da SUDENE. Talvez este quadro histórico explique, em grande medida, a aproximação do jornal ao projeto da Ditadura Militar instalado em todo país em 1964. Neste movimento o JP não estava só, pois sabemos hoje que a maior parte da mídia local, estadual e nacional seguiu este caminho, seja premida pelas circunstâncias, por conveniência ou mesmo por adesismo ativo.

 

Estas relações entre os interesses do grupo que o jornal representava e o projeto do Regime Militar estão estampadas já na primeira página da edição inaugural de 05 de setembro de 1971. Na parte superior desta aparece uma foto de Humberto Almeida, presidente do Conselho Superior do jornal (que contava com os seguintes membros: Raimundo Lira, Júlio Costa, João Batista Dantas, João Rique Ferreira, José Carlos da Silva Junior e Artur Monteiro), sendo cumprimentado por autoridades locais em virtude da inauguração do JP. Ao lado desta temos a principal manchete: “Médici hoje em Salvador para jogo do Botafogo.” O texto, acompanhada de um foto do personagem evocado na chamada, afirma que general-presidente estaria naquele dia assistindo a uma partida de futebol no estádio da Fonte Nova, válida pelo campeonato nacional daquele ano, envolvendo as equipes do Bahia e do Botafogo do Rio de Janeiro, ainda em pleno clima de euforia da conquista pelo Brasil da copa do mundo de 1970, fato este transformado pelos dirigentes da nação em propaganda oficial do Regime. A propósito, é visível também o espaço considerável que o jornal disponibiliza para a figura e as ações de governo do interventor Luiz Motta Filho, o homem de confiança da ditadura em âmbito local, a começar desta edição primeira.

Contudo é com a análise dos editoriais que podemos perceber com mais clareza este aspecto da questão. Como sabemos, o editorial talvez seja a parte onde mais explicitamente fica claro os interesses e o projeto que um matutino representa na sociedade. Nesse sentido, em editorial, sugestivamente intitulado “Uma linha de conduta”, o articulista destaca que a política do jornal se enquadrará:

“Dentro dos princípios de renovação implantados após a Revolução de 64.” (JP-23/02/1972).

 

Na edição de 27/02/1972, a pretexto de discutir a necessidade de surgimento de novas lideranças locais para erguer uma “Nova Campina”, o editorialista afirma o seguinte sobre o golpe civil-militar de 1964:

“A Revolução de março ocorreu no momento em que se fazia necessária. Sem a renovação que pregou apenas o caos, a desordem e a anarquia nos aguardavam”. (JP. 27/02/1972).

 

Este desejo de uma “Nova Campina” correspondia (guardadas as devidas proporções) à reprodução em âmbito local do projeto do “Brasil Grande Potência”, o carro chefe da ditadura militar para a nação como um todo. É desta matéria que trata o editorial cujo titulo é “A hora presente”:

“E esse milagre, o milagre brasileiro, que está sacudindo esta grande nação, é filho do trabalho, da abnegação e do patriotismo dos que dirigem este país na hora presente, contando com o apoio do seu povo”. (JP-29/03/1972).

 

Em sua edição de 31 de março de 1972 o Jornal da Paraíba circulou com um caderno especial dedicado ao oitavo ano da “Revolução” de 1964. A parte superior da primeira página do caderno traz fotografias dos até então três presidentes do ciclo militar no Brasil, a saber: Humberto de Alencar Castelo Branco, Artur da Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici. Logo abaixo, impresso em letras garrafais, o titulo da matéria por si só é significativo: “A Revolução que salvou o Brasil”. Por fim, completando a página, temos um texto dividido em vários boxes que faz um balanço do período, desde a deposição do ex-presidente João Goulart, passando pela vitória da “Revolução” com instalação do primeiro governo militar até aquele momento vivido pelo país em 1972.  Na matéria, o jornal reafirma alguns pontos de vista que vinha defendendo desde a sua criação no ano anterior em relação ao regime, concluindo com uma visão bastante alvissareira de que até o final da década o Brasil se tornaria uma das 10 maiores potencias do mundo, com riqueza econômica e social para todo o povo brasileiro.

 

Folheando com mais acuidade o referido caderno, observamos que o JP não estava só nesta empreitada apologética do Regime Militar. Na verdade ele se transformou em uma espécie de porta- voz das chamadas “classes representativas” da cidade, seja estas ligadas ao setor público, seja a iniciativa privada. Lá estão matérias com mensagens de congratulações a “Gloriosa” de entidades e instituições locais, tais como: “Indústria e Comércio José Carlos S/A; Associação Comercial de Campina Grande; Sindicato Rural de Campina Grande; Loja Maçônica Regeneração Campinense; Wallig Nordeste S/A; Agência do Banco do Brasil S/A; Loja de Explosivos Manoel Ferreira Filho; Malharia Preferida; CELB; Empresa Telefônica da Paraíba; Câmara Municipal de Campina Grande; Casa B. Bezerra; Artefatos Metalúrgicos Muller Nordeste S/A; Construtora Brasil; CODESA- Comércio Auto-Diesel S/A; Casa Sem Nome; Armazém Paraná; Manoel Patrício- Máquinas e Tratores; Araújo Rique & CIA; Arbame- Mallory do Nordeste S/A; Curtume Antonio Villarim S/A; IPELSA-Indústria de Celulose e Papel da Paraíba S/A; Casa de Saúde e Maternidade Dr. Francisco Brasileiro. A título de exemplo, vejamos algumas destas mensagens:

 “Este é um dia histórico para nossa Pátria. O 31 de março representa a libertação do jugo comunista e o surgimento de uma era de paz e tranqüilidade para a Nação. Por isso nos sentimos verdadeiramente felizes porque felizes estão 80 milhões de brasileiros.

 

Araújo Rique & CIA- tradicional empresa campinense, saúda todos os brasileiros na pessoa de seu eminente Presidente General Médici.” (JP-31/03/1972).

 

Em algumas mensagens, constatamos que os emissores tomam de empréstimo o infame slogan “Brasil! Ame-o ou deixe-o”, uma síntese daqueles trágicos anos de chumbo, como foi o caso de Manoel Damião, proprietário do Armazém Paraná: “A paz acima de tudo!

 

A revolução democrática de 1964 assegurou a paz a milhares de brasileiros. Por isso, rendemos nossa homenagem a todos que participaram do Glorioso Movimento.

 

Brasil! Ame-o ou deixe-o.” (JP-31/03/1972).

 

Ao contrário da previsão do JP, o projeto do Brasil como grande potência começou a desmoronar ainda na década de 1970, deixando para a posteridade conseqüências perversas que ultrapassam em muito a sua dimensão meramente econômica. Mesmo com o fim do Regime Militar nos anos 1980, resultante de uma conjuntura nacional e internacional complexa, esta herança maldita não foi de todo superada, com reflexos dramáticos ainda hoje em nossa vida sócio-econômica, política e cultural. Em âmbito local, Campina Grande nunca mais obteve o status de pólo regional que havia desfrutado em tempos passados, dentre outras razões, em função da própria política posta em prática pelos militares de priorizar o desenvolvimento regional em torno das capitais, no caso da Paraíba, João Pessoa. Com o malogro de sua experiência industrializante, cujo símbolo maior foi o fechamento definitivo da filial da Wallig Nordeste S/A em 1979, a uma parte das elites campinenses viu nas “indústrias sem chaminés” dos mega eventos, representados pelo Maior São João do Mundo e a Micarande, uma possível alternativa para a crise. Estas festas e suas estruturas (embora não tenham resolvido os problemas da cidade) acabaram contribuindo para legitimar os novos grupos políticos que emergiram no município depois do fim da ditadura e se alternam no poder até hoje. Em anos recentes a cidade vem sido lembrada pelo potencial cientifico e tecnológico, a partir do conhecimento produzido pelas suas universidades e centros de pesquisa.

 

Campina Grande adentrou o século XXI com um contingente populacional que quase duplicou em um período de 40 anos. Dados do último Censo do IBGE apontam para o município uma população de 385.000. Neste meio tempo ela não resolveu velhos problemas e, de quebra, acumulou novos que esperam solução. Porém, o seu maior problema não difere muito da maioria das cidades brasileiras com o seu perfil de médio porte. É que o seu decantado desenvolvimento, difundido em prosa e verso com tanto orgulho por suas elites de ontem e de hoje, se mostrou bastante injusto e excludente para a grande maioria de seus moradores, em que os benefícios do “progresso” foram e continuam a ser um privilégio para poucos. Em outras palavras, esta é uma cidade até hoje partida, entre a pobreza e a riqueza, o centro e a periferia A título de exemplo, basta aqui citar que a mesma cidade que se orgulha de ser um dos mais importantes pólos de desenvolvimento tecnológico e cientifico, com destaque nacional em algumas áreas, não consegue resolver problemas básicos de sua população. Segundo dados oficiais, 1/3 da população local (o que em termos numéricos se aproxima de 100.000 pessoas!) vive entre o estado de miséria e pobreza extrema, sobrevivendo com recursos que variam entre R$ 32,00 e R$ 242,00 provenientes do programa Bolsa Família, administrado pelo governo federal.

 

Por fim, gostaríamos de concluir lembrando que o “Jornal da Paraíba” se tornou nestes 40 anos de existência uma importante fonte documental para a história de Campina Grande. Se bem inquiridas, algumas de suas já desgastadas páginas podem revelar diferentes e contraditórias facetas de realidades que ajudaram e ajudam a compor a paisagem da “Rainha da Borborema”.

 

 

Luciano Mendonça de Lima é professor da Unidade Acadêmica de História e Geografia da UFCG


Data: 19/10/2011