topo_cabecalho
Artigo - De como Miudinho contribuiu para a vitoriosa greve dos professores

Wagner Braga Batista

 

 

Depois de espreitar a movimentação das tropas inimigas, a topografia irregular das montanhas, o árido terreno dos arredores de Puxinanã e as enormes assimetrias da UFCG, Miudinho, mais uma vez, foi à luta.

Desceu as colinas e se embrenhou nas selvas que penetram a universidade.

Como sempre, em nome da causa proletária.

Esta estória começa na década de 1930 eA tem seus desdobramentos nos dias de hoje, durante a greve nacional de servidores da educação.

Graças a ela, Miudinho, equilibrou-se sobre penhascos, esgueirou-se nas temíveis corredeiras do Rio Piabas e superou difíceis obstáculos da vertente sul da Serra de Puxinanã.

Solidário aos mestres e servidores das instituições federais de ensino superior do Brasil, não mediu esforços.  

Sem temor de colocar em risco sua integridade física e mais de meio século de rígida clandestinidade, apresentou-se como voluntário para mais uma renhida batalha em prol de direitos coletivos e da educação pública em nosso país.

Desde 1935, mantinha-se entrincheirado e atento à senha.

Aguardara décadas a fio o chamado de insurgentes de Natal e, quiçá, de remanescentes de Caparaó. Apesar de sua permanente prontidão, nenhuma senha lhe fora enviada. Nenhum alento sequer.

Frustrado, exercitava o ímpeto e a consciência revolucionária mobilizando para a revolução vindoura os esguios preás, escorregadios tejos, pachorrentos jabotis, volúveis mocós, tendo como única gratificação para seu árduo trabalho o acolhimento da jumentinha Jussara, digníssima prestadora de serviços num sitio vizinho.

Jamais esmoreceu.

Seu contato com o mundo tornara-se insólito. Possível, graças às ondas curtas do rádio Transglobe que resistia às mudanças tecnológicas, às bruscas transformações no leste europeu, às teorias pós-modernas e à secura do cariri paraibano.

Reitero: Miudinho, nunca arrefeceu.

Nunca se eximiu do compromisso histórico e de refregas contingenciais. Sempre que acionado, apresentava-se de pronto.

Eventualmente, descia os íngremes picos escorregadios, patinando no solo arenoso de Puxinanã, com um único intuito: defender pobres e oprimidos, minorias açoitadas pelo capitalismo selvagem e os flagelados caçotes do açude de Bodocongó.

Inabalável em sua crença esperava que marinheiros do Kronstadt, sobreviventes da mítica incursão pelos ANDES e, é claro, remanescentes de Caparaó pudessem sobrevir algum dia.

Seu olhar lamurioso varria as temíveis corredeiras, na esperança de que seus camaradas aportassem nas margens do rio Piabas. Em seus vibrantes sonhos visualizava sua chegada empunhando a gloriosa bandeira verde, branca e grená, ornada com o símbolo da união dos trabalhadores da cidade e do campo. Daí, formariam a vitoriosa coluna que partiria do Ponto Cem Reis para o reino da liberdade.

Até lá, somente sua perseverança revolucionária encontrava eco nesta dura realidade.

Enquanto isto, angustiava-se com delírios solitários e privações. Em absoluta austeridade, comia palma e calango, refestelando-se, quando muito, com restos de farinha e sobras de carne de matadouros clandestinos, obtidas na periferia de Campina Grande.

Abrigado na toca de cordata cascavel, passava seus dias e noites confabulando sobre os rumos incertos do governo Dilma com um velho peba, egresso das lutas republicanas espanholas, sem jamais descuidar,  sempre a postos para o chamado da revolução.

Porém, a História é matreira. E eis que lhe reservou uma surpresa.

De repente, por meio de seu rádio Transglobe, tomou conhecimento da greve nacional dos professores. Ocorria, logo ali, na esquina, a três léguas a noroeste de onde estava  enfurnado.

In continuum, em sigilosa mensagem, codificada para este único e solitário ouvinte, o rádio notificou que seria visitado.

Ansioso, teve febre e calafrio.

Às noites, repetia para si mesmo, que a ansiedade é um desvio pueril, porém não conseguia conter seu ímpeto, até que as três horas e 22 minutos da madrugada do dia 06 de junho de 2012, recebeu a tão esperada visita de emissários do comando de greve.

Ouvia atento o comunicado, quando premido pelo fervor militante, bruscamente interrompeu:

- Companheiros, sem delongas, a revolução nos espera!

E assim, após repassar sua bússola para os visitantes, conduziu-os à área limítrofe da vida real. A partir daí, selado seu compromisso, novamente se embrenharia nas selvas que penetram a UFCG.

Apressado, colocou todos volumes dos clássicos marxistas no bornal, acrescentou pequenos acessórios, o cotoco de vela para queimar pestanas em leituras noturnas, três pitadas de sal, meia cuia de farinha e um naco de carne jabá. Estava pronta a ração para três estimados  longos meses de esta campanha.

Sem titubear avançou pela noite adentro.

Beneficiado pelas luzes das estrelas deste imenso céu paraibano, em apenas cinco dias  percorreu o trajeto que separa as cercanias de Puxinanã e as selvas que penetram a UFCG.

Acautelando-se com coiteiros, línguas soltas, traíras, professores faltosos e negociantes, privatistas e fura-greves, caminhava no alento da noite. Vigilante, dormitava alguns minutos durante o dia  trepado em espinhosos juazeiros.

Esporadicamente, sorvia três gotas de orvalho para matar a sede.

Lembrou-se, no entanto, que antes desta urgente empreitada, precisava retomar o contato com os camaradas que ficaram acoitados no Buraco da Gia e nos arredores da Fazenda de Dona Nezinha, desde a última incursão revolucionária na década de 1930.

Laborioso esforço deveria ser desenvolvido para resgatar estes antigos jovens companheiros para a causa dos servidores da universidade e da educação pública, gratuita e de qualidade esmerada, segundo lhe confidenciaram os mensageiros enviados pelo Comando Local de Greve.

Resistiriam, certamente, alegando que se tratava de uma refrega limitada, sem grande alcance social e tipicamente pequeno-burguesa.

Porém, nada e ninguém resistem ao poder de convencimento de Miudinho.

Deste modo, velhos companheiros integraram-se a luta, convictos de que a greve dos professores beneficia todos segmentos sociais que não podem prescindir da educação pública e gratuita.

E Miudinho seguiu adiante.

Para acercar-se da universidade, após intenso trabalho de proselitismo e recrutamento, disfarçou-se de funcionário da Cagepa, de gari terceirizado, de flanelinha Macarrão, antigo camarada, e assim se aproximou de vigias de rua, de porteiros de edifícios, de frentistas, de bêbados e de mundanas.

Saibam vocês, estava formada a retaguarda da vanguarda do movimento docente. Inquebrantável e numerosa, constituiria, desde já, o elo de ligação dos excluídos de Campina Grande com intelectuais orgânicos da UFCG.

Como está visto, senso político, animo e perseverança nunca lhe faltaram.

Neste interregno, entre uma e outra tarefa, construira depósitos de viveres em ruas vicinais, cavara vias subterrâneas de acesso ao Centro de Extensão Zé Farias, montara aparatosa rádio e gráfica para a greve, além de organizar a extensa rede de apoio com desempregados, sem terras, meninos de rua e demais excluídos da sociedade.

Miudinho, agora se transferira para a proximidade do sindicato.

Em construção contigua, em poucas horas de atuação criara o sincrético Sindicato de Peões, Ajudantes de Pedreiros, Donas de Casa e os milhares de terceirizados da UFCG. Com mais esta base de sustentação operária, transitava confiante pela universidade, sem descuidar das orientações do comando local de greve.

Foi assim que circulando pela UFCG conseguiu sensibilizar expressiva parcela do professorado. Todos disputaram lugar nas comissões de greve. Seu empenho foi tal que em um único final de semana agregou 2237 professores ao Comando de Greve.

Explique-se. Entre eles havia aposentados, reservistas, imigrados, banidos, moradores em países, estados e municípios vizinhos, ocupantes de cargos comissionados, exilados da universidade e até mesmo respeitáveis companheiros finados que se reintegraram a mais esta memorável campanha.

E foi um destes companheiros finados que instigou Miudinho.

- Não podemos limitar esta campanha apenas à luta pecuniária, muito importante sem dúvida, porém insuficiente.

Ponderou o finado:

- Se não transformarmos qualitativamente nossa luta, esgotaremos seu potencial crítico. Correremos o riso de nos tornar reféns e fazer coro com aqueles que desprezam a defesa da educação pública e transformam a universidade em espaço privilegiado para a realização de seus negócios privados.

- Corretíssimo, companheiro! Concordou Miudinho.

Afinados, os dois velhos timoneiros, avançavam na elaboração de diretrizes para a greve.

-Também não podemos ser estreitos e sectários. Sem perder nossa identidade, obrigamo-nos a  estabelecer uma ampla política de alianças.

Acrescentou a seguir:

-Não com privatistas e negociantes, que hoje infestam a universidade pública.

Após esta justa admoestação, sugeriu que Miudinho fosse deslocado para promover uma paradoxal política de aliança.

 Assim, mais uma ingente e inadiável tarefa se apresentou para Miudinho.

Renitente materialista fora convocado para ampliar o arco de sustentação à greve e incrementar um pacto, até então, inimaginável, imprevisto e inaceitável pela aguerrida militância docente.

Às ocultas, altas horas da madrugada, fora conduzido, às cegas, para local ermo.

Escolhido a dedo, graças a sua extraordinária capacidade de persuasão e credibilidade, não se furtou a sentar à mesa com solenes representantes das forças do além e altos dirigentes das forças motrizes da revolução proletária de Bodocongó.  

Explique-se. A limitação das forças motrizes ao território de Bodocongó deve-se ao fato de que o pacto estava circunscrito apenas à região do agreste paraibano.

Pela primeira vez, Miudinho sentia-se afrontado por reconhecer e dialogar com forças do além. Porém, manteve-se altivo. Disciplinadamente, em nome da causa, admitiu que não feriam a moral revolucionária e cedeu enfático:

- Tudo em prol da educação pública e da vitória dos servidores das ifes.

Miudinho tomou a pulso a tarefa. Observou que apesar do consenso sobre a justeza da luta dos servidores, os pactuantes mantinham-se inermes. Nada tinham a propor.

Surgiu o impasse.

E agora? Tratava-se de responder a célebre pergunta formulada no inicio no século XX: O que fazer?

Seu tirocínio manifestou-se de pronto.  

- Confrades das forças do além precisamos agir em conjunto. Primeiramente os camaradas das forças motrizes do proletariado têm o dever histórico de romper com a burocracia. Urge que conscientizem, organizem e mobilizem nossas bases. Não à busca de diárias e passagens aéreas. A militância sindical deve estar preparada para a superação de todas adversidades históricas. Para lutas conjunturais e enfrentamentos estruturais. Após esta consideração, farei uma proposta.

Incisivo, antecipou:

-Atrevo-me a dizer que podemos  contabilizar mais uma vitória.

Todos se entreolhavam sem nada entender.

-Temos que ser objetivos. Adiantou.

- Confrades do além, enquanto nós mobilizamos nosso povo, os servidores, vocês têm uma nobre e imperativa tarefa.

Todos continuaram atônitos.

- Mobilizem as almas e os espíritos evoluídos. Contatem imediatamente o finado João Amazonas. Com a anuência do Todo Poderoso, assegurem que ele baixe em Sergio Mendonça e aplique o centralismo democrático.

Advertiu a seguir:

- Cuidem para não confundir João Amazonas com Jover Telles.

Insistiu nas ações seguintes:

- Decisiva mesmo é a participação do inestimável companheiro Jair. Certamente deve estar novamente clandestino militando nas hostes celestiais. Confrades das forças do além, vocês devem localizá-lo e convencer seu espírito a incorporar, ao menos temporariamente, o ex-Aloisio Mercadante.

Porém, a tática de Miudinho não havia se esgotado.

- Nós, forças motrizes do proletariado de Bodocongó, em outra frente, acionaremos a companheira Heleonora, aguerrida militante do Movimento Feminino pela Anistia da Paraíba. Insistiremos em que não descuide e fique colada nos ouvidos da camarada Dilma.

Finalizou.

-Não hesitem. A sua inabalável fé nos espíritos evoluídos e nossa convicção no ardor dos nossos combatentes do proletariado são garantia de vitória. Estejam certos, confrades das forças do além, nossa estratégia não falhará.

A seguir sentenciou:

- A greve dos professores será decidida em Bodocongó. A mídia sugere que o mundo gira em torno de grandes potencias, porém o destino da humanidade está centrado em Campina Grande. As lutas populares no quadrante de Bodocongó desenharão o novo contexto planetário.

Isto dito, cônscio do acerto da linha de ação definida consensualmente pelas forças do além e do proletariado, finalizou:

- São favas contadas....

O decisivo papel das entidades de representação, a unidade de todos servidores das instituições federias de ensino, a ampliação da aliança sindical com setores excluídos e as providenciais forças do além, patrocinadas por Miudinho, além da participação dos “espíritos evoluídos” na mesa de negociação, conferiram autoridade, representatividade e capacidade de barganha aos nossos representantes em Brasília.

Sem ter mais o que fazer, Miudinho saiu de cena.

Consciente de seu compromisso com a classe trabalhadora, sem temor de que esta luta conjuntural se esfume, Miudinho deixou para trás as selvas da UFCG e retornou às montanhas de Puxinanã.

Voltou à clandestinidade, ao anonimato, ao salutar convívio com preás, tejos e jabutis, sob a extensa abóboda celeste do generoso junho paraibano.

Isto tudo é um simples piscar de olhos no longo processo histórico. O resto, até que sobrevenha a revolução salvadora, será apenas uma singela lembrança desta curta, porém edificante estória.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG e torcedor do Fluminense


Data: 18/06/2012