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Artigo - O diireito à cidade e o movimento do passe livre

Wagner Braga Batista

 

Ao me deparar com a irrupção deste movimento, que toma conta do país, gera sentimentos controversos e modifica a agenda das grandes corporações midiaticas, imaginei que estivesse em delírio. Que as massas proletárias humilhadas e ensandecidas,  afogadas historicamente nas águas turvas do Açude Bodocongo, estivessem despertando de longo sono, ressurgindo para a vida,  para o exercício da consciência e da cidadania.

 

Porém, não estava em devaneio.

 

Célere, liguei a televisão .

 

Atestei que  verdades insofismáveis e falsificadores da opinião pública estavam sendo desmontados pela realidade dos fatos. Em processo de convulsão, despojavam-se de habitual arrogância para se curvar frente  à realidade. No entanto, para  não perderem o monópolio das verdades e das fantasias, desfiavam senões para fazer uma dura concessão: adicionavam a crescente mobilização popular à agenda publicitária, aos incomensuráveis investimentos em negócios obscuros e ao repugnante marketing esportivo da FIFA, CBF e congêneres.

 

Dialetica e ardilosamente, tornara-se oportuno para este circulo de interesses absorver, modificar e capitalizar impulsos transformadores para assegurar a velha ordem.

 

Corporações transnacionais comprometidas com estratégias de marketing, promotoras de  megaeventos e especialistas na transferência de recursos públicos para a iniciativa privada,  arrepiaram-se. 

 

Perceberam que, surpreendentemente, o “grande negócio” poderia fazer água. Movimentos de rua roubavam a cena da Copa das Fusões e Transfusões, sob os auspícios dos contribuintes diretos e indiretos sem direito a ingressos ou beneficios de politicas públicas. Todos nós, neobobos, plasmados pelo neoliberalismo.

 

Diante desta metaforfose midiatica e da avalanche que toma conta das ruas,  lembrei-me de um texto de brilhante teórico francês Henry Lefebvre, intitulado “O direito à cidade”, editado na década de 1960..

Quando se discutia profundamente a disputa pela produção social, Lefvebre  remetia-nos à luta pela divisão dos bens incorporados à vida urbana.

 

Os movimentos de rua que eclodem em todo o país, em que pesem sua falta de coordenação, de diretrizes e a possibilidade de manipulação por forças conservadoras, apresentam inegáveis virtualidades. Primeiro, involuntariamente,  recolocam a condição da cidade como centro e ápice de  processo civilizatório que culmina com a modernidade. Que transforma o meio urbano em ambiente que densifica direitos sociais. Segundo, implicitamente, denunciam a mercantilização da vida humana, que subtrai dos horizontes de populações urbanas e rurais a essencia de suas efetivas necessidades.

 

Estes movimentos denunciam a privatização e a mercantilização deste espaço público moderno,  cujo planejamento despreza exigências da vida humana para situá-las num ambiente artificioso, estéril e alienante, no qual imperam a dinâmica e as estratégias de mercado.

 

Portanto, este movimento parece-nos bastante salutar.

 

No entanto, quando nos deparamos com manifestações de irracionalidade e de voracidade, cujo desfecho é a destruição de patrimônio publico, ficamos perplexos..

 

Sem sombra de dúvida, há manifestações de violência desenfreada e desmedida que destroem indiscriminadamente bens culturais .  Investem contra icones da corrupção e da cultura reificadora, que nos desumaniza, ao mesmo tempo em que ameaçam patrimônio histórico e ambiental, depositário de ideais destes movimentos

 

Sentimo-nos igualmente agredidos e nos indagamos sobre os móveis destas ações.

 

Certamente, seus jovens protagonistas também se sentem violados. Percebem o quanto foram submetidos a estratagemas que apelavam à juventude para aviltá-la. Para desvirtuar seus anseios e suas pulsões, alvos preferenciais de estratégias políticas e de marketing.

 

Nossas apreensões frente aos desdobramentos destas manifestações, impõem a tentativa de  interpretá-las.

 

O que nos dizem?

 

A irracionalidade da violência tem raízes numa estória de sucessivas violações de vocações, de adulteração de expectativas, de desprezo por sentimentos e de negação de direitos elementares da juventude.

 

Conhecida poesia de Bertold Brecht ajuda-nos a compreender algumas causas destas manifestações violentas.

 

Chamamos de violento

Um rio que tudo arrasta

Esquecemo-nos de dizer que

Violentas são as margens que o aprisionam.

 

 

A reação da juventude, apesar de seus aspectos traumáticos, é um ato rompimento de limites que lhe foram impostos. Portanto, um ato de liberdade.

O velho Sartre nos dizia que os seres humanos são condenados à liberdade.

Uma liberdade que pode se manifestar de modos controversos. Desde a forma extremada, por meio do suicídio, que permite que o escravo se liberte da escravidão, até a liberdade de lutar para colocar a vida humana como centro das atenções sociais.

 

É esta liberdade que estamos exaltando, posto que também há formas de liberdade que são atrozes, que negam sua pulsão emancipatória. Que se contrapõem às iniciativas que visam a criação de condições indispensáveis e impostergáveis para que seres humanos se libertem de privações de toda ordem.

Por isto estas formas de liberdade são iniquas, perversas e degradantes. Entre elas, a liberdade de explorar o outro ser humano, de submetê-lo à vontade própria, de manipulá-lo por diferentes meios, de impedir que tenha acesso a patrimônio acumulado historicamente por toda humanidade. Esta falsa liberdade não promove direitos humanos, distorce-os, rebaixa-os e os anula.

 

Em que pesem todos seus desvios e manipulações, os movimentos de rua reacendem uma luz. Traz à baila a ação de grupos informais enquistados nos poderes públicos que colocou negócios e interesses privados no centro da discussão de políticas públicas.

 

Nesta medida, as ruas convertem-se em profigiosos canais de denúncia, de comunicação, de participação e de representação. Promovem a democracia direta, por meio da indissociavel articulação entre participação e representação. Concede a todos a possibilidade de reivindicar  direitos que, não são apenas individuais, são coletivos.

 

Deste modo, as ruas convertem-se em escoadouros e caixas de ressonância de vozes silenciadas por muitas gerações. Por séculos de opressão, de discriminação, de entorpecimento e de manipulação social. Esta vocalização unissona, diversificada, rouca, sofrega, embotada, sufocada, tropega, multipla, plena, que  mistura timbres e  sotaques, finalmente se faz ouvir.

 

É um movimento que se pretende sem bandeira, mas que abriga milhares de bandeiras. É a soma de multiplas bandeiras, unificadas num chamado à realização da democracia direta e a defesa de direitos verdadeiramente humanos.

 

Muitas bandeiras unificadas num projeto democrático, amplo e socializador que coloca em primeiro plano a realização de direitos sociais. Que viabiliza a formulação e a execução de políticas públicas capazes de ampliar o horizonte social dos que hoje pleiteiam apenas transporte público.

 

Uma sugestiva imagem ajuda-nos a entender seus propositos: vinte centavos são a ponta de iceberg que tem como lastro a defesa do direito à saude e à educação pública, à moradia, à justiça, entre tantas demandas da população brasileira.

 

Por isto, amanhã, estaremos, todos, na Praça da Bandeira, com o coração vermelho inflado, pulsando forte sob a camisa branca.

 

Não podemos deixar que este impulso transformador se dilua e se desfaça. Que se torne refém de grupos ou de pessoas, que o manipulem e canalizem suas potencialidades para a homologação de práticas e valores assimétricos. Não podemos deixar que seja contaminado pela violência e pela irascibilidade residual, que compromete sua compleição massiva, sua feição dialógica, seu caráter democrático e sua condução pacifica.

 

Por isto, democraticamente, todos estamos comprometidos com sua organização, com sua segurança e com a realização de seus objetivos democráticos, que podem ser sintetizados na palavra de ordem: o direito à cidade é um direito de todos.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 19/06/2013