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Artigo - Movimento passe livre: minha primeira vez...

Wagner Braga Batista

 

 

Ontem voltei a ter palpitações e suores, a mesma hesitação da menina que coloca o primeiro sutiã e do menino que veste calça comprida pela primeira vez.

 

Iria desfrutar de um prazer do inusitado.

 

Orgulhoso, entrei nas calças compridas e me vesti de gente grande para enfrentar minha quinquagenária companheira Cris.

 

- Você é um menino, não pode participar destas manifestações.

 

Com as pernas trêmulas, ouvi suas ademoestações, finalizadas com um seco:

 

- Não, vai não!

 

Contrariando sua determinação, revolucionariamente, ousei.

 

Sorrateiro, me esgueirei pelas beiras da porta e fugi de casa como criança travessa.

 

Depois de muitíssimas vezes, seguramente, iria vivenciar uma outra primeira vez...

 

Minha primeira vez, de calças compridas.

 

1

 

Apressado, segui  para o ponto de ônibus. Lá fui advertido pelo vatícinio de altiva transeunte:

 

-  Não adianta esperar. O centro de cidade está cheio de gente. Hoje os onibus, definitivamanente, não passarão.

 

Antes de supor que se tratasse de uma insurreta Dolores Ibarrury emergindo do Pedregal,  agradeci. 

 

2

 

Sem tirar os olhos da Passionária, adiantei o passo e segui a pé. No curto trajeto que separa Bodocongó do centro do mundo daria vazão a devaneios.

 

3

 

Eis que, poucos metros adiante,  antes que aflorasse qualquer resquício de sonho, avistei a salvação. Vagarosamente, avançava, robusto e garboso, o conhecido ônibus 505. Desvencilhei-me dos sonhos, apeguei-me  às certezas e cedi às facilidades.

 

Por meio desta odiosa concessão, admiti que o velho e cansado 505, icone da falida política de transportes públicos,  conduzisse-me illeso ao meu destino. Levar-me-ia ao epicentro do mundo em convulsão.

 

4

 

No ônibus, passageiros temerosos murmuravam:

 

- Vai haver bagunça.  

 

Outros, solertes como eu, espreitavam com o rabo do olho e atilados ouvidos de tuberculoso.

 

Alguns conspiravam contra si mesmos e conjecturavam:

 

- Quando e a que horas será a baderna?

 

Outros, efusivos e radiantes, viam-se em pincaros.

 

Perguntavam-se:

 

- Em que momento, nós, aficcionados torcedores, daremos vazão a nossas irrefreáveis angústias?  Quando teremos o direito de torcer sem remorsos? Quando poderemos vivenciar plenamente, sem sentimento de culpa, nossos atos de lucidez e de alienação? Quando poderemos ocupar o espaço público para proclamar a infinitude de nossas paixões? Quando teremos o direito de democratizar o futebol? Qunado celebraremos, sem patrocinios e sem emulações, a união dos povos, a faternidade e a universalidade de todas torcidas?

 

Sizudo, um passageiro retrucou ameaçador:

 

-  Comunistas!!! Os homens vão meter a borracha !!!!

 

5

 

Afoito, solidarizei-me  com o motorista.

 

- Pessoal, a História não espera pelos passageiros do 505.

 

Urgia chegar, antes do futuro, para ver com os próprios olhos, o amplo e incompreendido movimento dos meninos de calças curtas, pela primeira vez.

 

6

 

Enfim chegara à Praça da Bandeira, onde inúmeras vezes brinquei com meus filhos, joguei conversa fora na banca do Orlando e vivencei tantas experiências significativas, ora revividas pela primeira vez.

Lá, frente a outros meninos em idade provecta, partilhávamos a mesma sensação de vestir calças compridas, novamente, pela primeira vez.

 

Olhavámos estarrecidos para outros meninos de calças curtas e nos sentíamos envergonhados. Com que facilidade transitavam entre nós! Que vitalidade demonstravam! Que clareza em suas manifestações! Que exuberante aquele movimento que brotara do nada!

 

E os nossos manuais? O que tinham a nos dizer?

 

Calados, ficávamos enrubescidos. Procurávamos nos agrupar, esconder as pernas e falar pro vento.  

Então, um  de nós se adiantou:

 

- Por que ao invés de ostentar estas calças, também não viemos de calças curtas ? Por que fomos tão pretensiosos, impositivos e deterministas? Vejam só: as esperanças deles não são tão diferentes das nossas?

 

Porém, subsistia uma ponta de presunção e de vergonha, que não conseguíamos esconder.

 

-7-

 

Afinal, supunhamos que o mundo evoluísse numa só direção. Nesta rota, não haveria caminhos afora dos que estavam estratégicamente traçados e, por isto, constavam de nossos mapas. Fora deles, a geografia da realidade e os sobressaltos do imaginário coletivo nada teriam a dizer, posto que não havia outras direções.

 

Enxergávamos, porém não podiamos ver inúmeras alternativas a um palmo de nossos  narizes.

 

Agora, certamente estávamos corrigindo a visão.

 

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Com enorme felicidade já conseguíamos verr outros meninos de calças compridas, em meio a tantos meninos de calças curtas.  Vê-los como companheiros de caminhada, que sempre foram.

 

Aos poucos iam descendo de suas presunções, veleidades e idiosincrasias para se aproximar daquele caudal que tomava conta da praça. Apesar das profundas divergências, comunicavamo-nos e nos víamos, todos, de calças compridas.

 

Radiante, para nos animar, um deles relembrou  Marcio Borges, no Clube da Esquina:

 

- Pois é, camaradas,  sonhos não envelhecem jamais.

 

-9-

 

De calças compridas, surpreendíamo-nos prazerosamente cedendo a impulsos de menimos cem anos mais novos do que nós. Cedíamos à espontaneidade, esta desastrosa característica das massas sem direção. Cedíamos também à beleza, ao vigor, da pureza, ao despreendimento e à capacidade de iniciativa desta gente de calças curtas..

 

-10-

 

Nós que refutávamos  estas particularidades dos movimentos de massa, repentinamente despertávamos para suas virtualidades críticas. Curvavamo-nos ante a fragilidade de nossas certezas, de nossos ranços, animosidades e ceticismos costumeiros.

 

-11-

 

Na praça já não havia lugar sequer para os pombos.

 

Meninos de calças curtas se multiplicavam. Reproduziam-se com extraordinária rapidez e nos conduziam para um novo começo. Propiciavam-nos a recriação de alegrias, fantasias, esperanças e esmorecidas convicções, novamente, pela  primeira vez.

 

-12-

 

Implicitamente nos diziam que não deveriámos hesitar.

 

Pra que temer  a imponderabilidade dos processos sociais? 

 

Novamente, sempre aprendemos, assim como na primeira vez.

 

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Avessa ao determinismo, a História não nos fornece garantias de seus desdobramentos, porém oferece-nos condições objetivas para interferirmos no seu curso. Contra nossa vontade, a História não é feita apenas de vontades, ainda que nos comprometa com nossas vontades e  esteja sujeita a nossas vontades.

 

Assim sendo, sujeita-nos a vivenciar compromissos, riscos e ameaças desconfortáveis, mas também nos contempla com delicioso sabor de novas esperanças. E para provar o sabor das esperanças, convida-nos a  experimentá-las, vivenciando-as plenamente.

 

E os meninos de calças curtas nos davam lições. Mostravam-nos como saborear estas novas e timidas esperanças.

 

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Enfim estavámos lá, eu e outros meninos, saboreando uma esperança nova como se tivéssemos tirado frutas do quintal do vizinho.

 

Novamente míope e usando calças compridas pela primeira vez, vi aqueles meninos se agingantarem. Apesar de suas diferenças, projetavam-se em outros meninos sem rosto e se  tornavame extraordinamente iguais. Melhor, uníssonos.

 

À cada intervenção, à cada palavra de ordem suas faces transmutavam. Um se tornava o outro e vice-versa. Este processo incontrolável parecia criar novas consciências. Parecia despertá-los para a exigência de novas práticas sociais. Parecia extraí-los de quartos lacrados, das senhas de computadores, do universo inóspito e sem vida dos games para a convivência. Parecia agregá-los na busca de formas mais hamoniosas de organização social. Estimulavam a coesão daquele grandioso gesto coletivo de generosidade.

 

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Sem timidez, os meninos de calças curtas cochichavam nos nossos ouvidos:

 

- Agora que conseguimos romper a porta do quarto e a redoma do computador, não podemos parar. É preciso transpor o Açude Novo, os limites da cidade, chegar ao curimatau, avançar pelo  sertão e semear o brejo. Ir além, ganhar o mundo..

 

Atônito, ouvia calado.

 

- É preciso minimizar riscos e adversidades deste agradável e fecundo movimento, diziam.

 

- É preciso regrar o caos para que a criatividade coletiva se imponha democraticamente, organize a vida presente. É preciso superar a anarquia, contida em nossas ações, para aprimorar e ampliar a organização, a participação e a representação consciente e solidária de todos nós.

 

Com notável maestria pedagógica, asseveravam:

 

- As ações coletivas nos levam a ensinar e a aprender a praticar a democracia. As ações conjuntas são educativas por excelência

 

Por fim, baixinho, os meninos de calças curtas, buchicharam nos nossos ouvidos:

 

- A perspectiva de sociedade justa, fraterna e igualitária enseja que a democracia direta seja requisito indispensável e indissoável do que vocês chamam de socialismo.

 

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E assim, meninos de todo tipo, azuis, vermelhos, amarelos, cinzentos, verdes, rosas, coloriam continuamente a praça. Aos poucos, transformavam a  impetuosidade de pulsões individuais em conscientes ações coletivas em prol do direito de todos.

 

Nós,  pretensiosos meninos, que pela primeira vez vestíamos calças compridas, estávamos perplexos.

 

Neste incessante trabalho de fornecer cores, vida e esperanças a cidades desfiguradas, redescobriámos na face senil de meninos de calças compridas um olhar que enrijecera e desaprendera a ver  o povo, a cidade e o mundo.

 

Portanto, tornara-se necessário reaprender a ver o mundo.

 

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Agora, serenos, poderíamos voltar para casa.

 

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Pelas mãos de meninos de calças curtas, um senil menino  furtivo voltava para casa.

Caminhando solitário, subia a ladeira do campinense. Porém, novamente não estava só.

 

Súbito percebera  que, como outros milhões de meninos, depois de tantas vezes, pela primeira vez se permitia se  vestir de tantas cores.

 

Com seu gesto furtivo, involuntariamente, aprendera a acender a chama das possibilidades. Aprendera também a colorir de luz e de vida, a vida sem vida e sem colorido de todas as nossas cidades.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 25/06/2013