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Artigo - João Roberto Borges de Souza: Presente!

Luciano Mendonça de Lima

 

 

“Vulto negro em meu rumo vem
Mostrar a sua dor
Plantada nesse chão
Seu rosto brilha em reza
Brilha em faca e flor
Histórias vem me contar
Longe, longe ouço essa voz
Que o tempo não levará”.
(Sentinela - Milton Nascimento e Fernando Brant).

 

No dia 10 de maio de 2013 o Colegiado Pleno do Conselho Superior da Universidade Federal de Campina Grande aprovou, por unanimidade de votos de seus membros, a mudança do nome do principal auditório da instituição, localizado no campus central. De Guillardo Martins Alves, a partir de agora ele passará a se chamar “Auditório João Roberto Borges de Souza”. Aparentemente protocolar, esse fato só adquire o seu real significado se visto em retrospectiva, ou seja, se recuperarmos a história da universidade e da sociedade brasileira nas últimas cinco décadas.

 

Nesse sentido, precisamos recordar que há quase 50 anos atrás a sociedade brasileira vivenciou um daqueles processos que impactaram profundamente a sua fisionomia econômica, política e cultural. Estamos nos referindo aos acontecimentos que culminaram no golpe de estado de 1964. Mais exatamente no dia 1° de abril daquele efervescente ano o Brasil mergulhou em um dos períodos mais sombrios de sua história, quando um movimento político capitaneado pelas forças armadas implantou uma ditadura que haveria de durar 21 longos anos e de cujas sequelas a sociedade brasileira não se livrou de todo.

 

Sob o pretexto de combater a subversão e a corrupção encarnadas no governo do presidente constitucional João Goulart, os militares e seus aliados civis golpistas de direita (com o apoio da CIA e do imperialismo norte-americano) implantaram uma nova ordem caracterizada em linhas gerais pelos seguintes aspectos:

 

1-Uma ditadura a serviço dos interesses do grande capital nacional e internacional, expresso em políticas econômicas que beneficiaram, no essencial, empresários, multinacionais, banqueiros e latifundiários.

 

2-Aumento do fosso social que separava ricos e pobres, transformando o Brasil desde então num dos países mais injustos e desiguais do mundo.

 

3-Institucionalização do terrorismo como política oficial de Estado contra toda forma de oposição ao regime, atingindo milhares de pessoas e grupos, vítimas de perseguição, cassação, prisão, tortura, banimento, desaparecimento e assassinatos.

 

4-Embrutecimento cultural do país, com a prática generalizada da censura, do controle da liberdade de consciência e o amordaçamento da livre manifestação do pensamento científico e da criação artística.

 

Por ser uma das instituições que mais expressou os dilemas e tensões então protagonizados no Brasil pré-1964, a universidade pagou um preço alto com o golpe e a subsequente ditadura então implantados. Nesse sentido, estava em curso um conjunto de mudança, expresso inclusive em uma das reformas de base do governo Goulart, a educacional, que apontava para a democratização da universidade brasileira, o que implicava, entre outras mudanças, no fim do sistema de Cátedra, na Lei que estabelecia a representação paritária de 1/3 dos três segmentos nos órgãos colegiados e em uma produção acadêmico/científica que estivesse em sintonia com as demandas históricas da maioria do povo brasileiro.

 

Esse processo foi brutalmente interrompido pelas forças golpistas, que ato-contínuo, procuraram adaptar a universidade as novas exigências do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, agora sob a égide do capital nacional associado aos grandes interesses multinacionais. Essa realidade se expressou, dentre outros aspectos, nos acordos celebrados entre os governos brasileiro e norte-americano (acordos MEC-USAID), de junho de 1965 e junho de 1966; na Lei 4.464, de 09 de novembro de 1964 (Lei Suplicy Lacerda) e no Decreto N° 477, de 26 de fevereiro de 1969, que alteraram profundamente o perfil da universidade brasileira, implicando, dentre outras coisas, em um modelo de universidade especializada em produzir mão de obra adestrada para o novo ciclo de desenvolvimento baseado na “modernização conservadora”; o desmantelamento da estrutura acadêmica com a sua departamentalização; a pulverização da vida universitária estudantil, com a criação do sistema de crédito; a repressão de quaisquer formas de manifestações de caráter político e reivindicatório dentro e fora da academia, com o consequente banimento legal das entidades combativas e representativas dos três segmentos; o amordaçamento da vida universitária, com a disseminação da cultura da delação e do medo, implicando em perseguição, expulsão e retaliação a membros da comunidade universitária, cujo “crime” maior era ousar discordar das novas diretrizes obscurantistas dos ditadores de plantão.

 

Contudo, para que esse novo projeto para a universidade brasileira pudesse sair do papel, seria necessário encontrar fiéis escudeiros dos novos donos do poder no próprio ambiente universitário. Em diversas universidades brasileiras alguns se prestaram a desempenhar esse serviço “sujo”, embora em outras pessoas e grupos tenham se recusado a desempenhar esse papel vergonhoso. No caso da UFPB, os militares e seus aliados civis não poderiam ter encontrar figura mais adequada para desempenhar tão infame função que não o senhor Guillardo Martins Alves. Isso porque, além de professor da Faculdade de Medicina da instituição, era capitão do Exército e buscou cumprir a risca a tarefa de transformar a UFPB em uma grande “caserna”, realidade essa que destoa totalmente de um ambiente universitário que se preze.

 

Após a destituição de Mário Moacyr Porto, então Reitor da UFPB quando do golpe de 1° de abril de 1964, Guillardo Martins Alves foi nomeado interventor, permanecendo no cargo até o ano de 1971. Neste longo período de reitorado, uma das páginas mais tristes e sinistras da história da instituição estava para ser escrita, com a instalação de um verdadeiro clima de terrorismo envolvendo professores, alunos e funcionários. É bem verdade que para levar a bom termo esse processo contou com a adesão ativa e a conivência passiva de membros da comunidade universitária, tudo isso em perfeita sintonia com os órgãos de informação e repressão da ditadura em âmbito local, regional e nacional. Mesmo depois de deixar o cargo a pesada sombra do ex-Reitor continuou a pairar na instituição. Como costuma ocorrer em períodos ditatoriais, sempre há aqueles que se prestam ao papel de “bajuladores” do déspota de ocasião. Foi nesse contexto que surgiu a ideia de denominar de Guillardo Martins Alves o atual auditório do prédio da Reitoria da UFCG ainda na década de 1970.

 

Dentre as drásticas medidas impostas pelo Reitor-Ditador Guillardo Martins Alves durante o período em que permaneceu à frente dos destinos da UFPB, podemos citar duas delas, ambas de 1969, no auge dos chamados “anos de chumbo” da ditadura:

 

1-Destituição de diretores de unidades acadêmicas, não renovação de contratos de trabalho de vários professores e técnico-administrativos e intervenção em entidades de representação estudantil.

 

2-Punição disciplinar a diversos alunos e ex-alunos de diferentes unidades acadêmicas da instituição, que tiveram seus pedidos de matricula cancelados ou proibidos.

 

Observando essa última lista (aprovada por unanimidade por um Conselho Universitário aquela altura totalmente subserviente aos ditames do Reitor), encontramos o nome de João Roberto Borges de Souza dentre os mais de 80 alunos que tiveram naquela ocasião o seu elementar direito de estudar arbitrariamente negado, com implicações que foram para além de suas vidas de estudantes. Como muitos de sua geração, o então aluno do 3° ano da Faculdade de Medicina (coincidente a mesma a que pertencia o Reitor ditador) João Roberto participou intensamente da retomada das lutas dentro e fora da universidade contra a ditadura militar, na condição de líder estudantil e militante de organizações de esquerda que atuavam nos movimentos sociais do período. Por conta dessa opção política e moral, pagou um preço alto, ao ser encontrado morto em 10 de outubro de 1969 nas águas turvas de um açude localizado no município paraibano de Catolé do Rocha. Seu corpo estava totalmente desfigurado, muito provavelmente em função das torturaras que sofreu previamente.

 

Como se tornou comum à época, a explicação oficial foi de que se tratou de morte natural por afogamento. Essa verdadeira farsa vem sendo desmontada ao longo do tempo, pois as evidências históricas cada vez mais apontam na direção de que João Roberto foi assassinado por agentes do Estado em função de sua militância política, mormente aquela desenvolvida no interior do movimento estudantil. Na base desse processo as delações promovidas pela própria Reitoria da UFPB junto aos órgãos de repressão da ditadura militar, que desde então passaram a monitorar todos os seus passos, culminando em um trágico desfecho.

 

O martírio de João Roberto Borges de Souza (e o de muitos de seus companheiros de militância e geração) não foi em vão, pois seu exemplo contribuiu para manter a chama acessa da resistência contra o regime militar, que foi obrigado a recuar em função de uma nova conjuntura de crise e da retomada das lutas populares e sociais entre finais dos anos 1970 e meados dos anos de 1980. Entretanto, esse processo não foi suficiente para que transformações profundas em favor da grande maioria da população trabalhadora adviessem, pois a chamada “transição democrática” foi tutelada pelas classes dominantes, com a manutenção inclusive de um pesado entulho autoritário que sobrevive até hoje, permeando também o ambiente universitário.    

 

Basta, por exemplo, lembrar que por ocasião dos 30 anos do assassinato de João Roberto Borges de Souza, a UFPB teve a oportunidade histórica de se desculpar dos erros cometidos no passado. No dia 27 de agosto de 1999, em sessão solene presidida pelo professor Jader Nunes de Oliveira, então Reitor da instituição, o Conselho Universitário aprovou, por unanimidade, a Resolução 16/99, revogando todos os atos arbitrários praticados na UFPB durante a ditadura militar, incluindo aqueles da gestão Guillardo Martins Alves, ao mesmo tempo em que se retratava institucionalmente perante a sociedade paraibana, especialmente diante dos membros da comunidade universitária punidos por atos de exceção provenientes daqueles tempos sombrios.

 

Contudo, naquele contexto de retratação, a comunidade universitária, especialmente aquela localizada no antigo campus II de Campina Grande, perdeu uma excelente oportunidade de levar essa história até o fim, ao não propor naquela ocasião a supressão do nome do Reitor-Ditador ao referido auditório. Mesmo com o desmembramento da UFPB e o subsequente processo de criação de uma nova instituição em 2002, a UFCG, o quadro não se alterou. Convém lembrar ainda que desde então o referido auditório passou a abrigar as reuniões periódicas do Colegiado Pleno e das Câmaras Superiores, os mais importantes órgãos de deliberação coletiva da UFCG, situação essa por si só incompatível, que fere e agride moralmente a consciência democrática. Assim, é inconcebível que a UFCG, como herdeira na linha direta do tempo da UFPB, ainda tenha reverenciado por tanto tempo, por ação ou por inércia, a memória de um personagem que tantos males trouxe à instituição e a muitos de seus membros.

 

Só agora, em um momento em que a sociedade brasileira busca (é verdade que com atraso e muitas limitações impostas pelas forças dominantes) acertar contas com um passado que teima em não passar, é que a mudança foi possível, a partir da iniciativa de membros da comunidade universitária que nunca se conformaram com essa história. Se por um lado a mencionada mudança de denominação do auditório em tela não implica grandes consequências práticas em relação à rotina acadêmica da UFCG, por outro ela vem carregado de um profundo significado ético e político, ao sinalizar claramente para a universidade e a sociedade em que estamos inseridos que não queremos que a história que o ex Reitor-Ditador indevidamente homenageado encarnou nunca mais se repita.

 

Além da mudança de denominação do nosso principal auditório, também foi aprovada a convocação de uma reunião extraordinária do Colegiado Pleno para o dia 28/06/2013. A solenidade deve contar com a presença de familiares do novo homenageado, entidades da sociedade civil e de defesa dos direitos humanos e membros da comunidade universitária, quando então será descerrada uma placa com o seguinte conteúdo: “Auditório João Roberto Borges de Souza. Vítima do arbítrio, da intolerância e do terror da ditadura militar na Paraíba (14/10/1946-10/10/1969)”.

 

Quis o “destino” que essa reunião acontecesse em um momento histórico em que diferentes segmentos da sociedade brasileira saíram às ruas para lutar por direitos econômicos, sociais e políticos sistematicamente negados pelos diferentes grupos dominantes que se sucederam no poder após o fim da ditadura militar no Brasil. Em vez de atender as justas reivindicações dos manifestantes o atual governo patina entre a postergação, a criminalização e o uso brutal da repressão policial, ameaçando inclusive disponibilizar as Forças Armadas na defender do sacrossanto direito à propriedade privada e dos negócios escusos da CBF e da FIFA no Brasil. Tudo isso poderia passar mais ou menos despercebido, em função mesmo da contumaz truculência histórica do Estado brasileiro contra as classes populares. Porém, desta vez a ordem vem de um governo dirigido por uma ex-guerrilheira cuja geração ousou lutar por um mundo melhor e por isso mesmo sofreu os horrores da ditadura militar, mas que ao chegar ao poder algum tempo depois se curvou a lógica cínica e violenta do capital e do status quo burguês, transformando o sonho de uma geração em pesadelo reciclado.

 

Nesse sentido, hoje se faz cada vez mais premente lutar para que o nome de João Roberto Borges de Souza (e muitos de seus companheiros que não estão mais entre nós) não se perca nos meandros do pragmatismo e do frio calculo político tradicional de uma esquerda que se esclerosou no tempo. Que seu exemplo continue a embalar e inspirar o sonho e o desejo daqueles que continuam a acreditar que um mundo (acadêmico e social) radicalmente diferente do que aí se está é possível e necessário. No caso da UFCG, esse projeto passa pela instalação imediata de uma comissão da “memória, da verdade e da justiça”, já que a era Guillardo Martins Alves é apenas a ponta do Iceberg de uma realidade bem mais complexa e profunda.

 

 

Luciano Mendonça de Lima é professor da Unidade Acadêmica de História e membro do Colegiado Pleno do Conselho Superior da UFCG.


Data: 27/06/2013