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Artigo - A burocracia estatal

Wagner Braga Batista

 

 

A confluência de três processos recentes oferece-nos  alguns elementos para  reflexão.

Remetem à efetividade do relacionamento de setores organizados da sociedade civil com diferentes agentes do poder público, responsáveis pela formulação e execução de políticas sociais..

Suscitam indagações sobre como se consubstanciam a representatividade e a participação social por meio deste relacionamento destinado à montagem de agendas políticas na atual conjuntura.

Destacamos três processos:

1-     A irupção de manifestações públicas de massa, com características distintas dos movimentos examinados pelas ciencias sociais, denunciando o uso abusivo de instituições e a subtração de direitos sociais, entre tantos outros questionamentos.

2-     A inesperada mudança de postura do Executivo e do Legislativo, mostrando-se permeáveis aos questionamentos populares, acompanhada de tentativa de minimizar o hiato entre poderes públicos e as classes subalternas.

3-      A aprovação, em toque de caixa, de vários Projetos de Lei, que contemplavam  reivindicações expressas nas manifestações públicas, bem como a retomada da reforma política. Esta proposta suscita a necessidade de avaliação e de profundas mudanças em instituições políticas, no entanto tem sido mantida em estado letárgico. Pode-se dizer que está em pauta desde 1988, sem que mudanças substantivas para a democracia e a vida social sejam efetivadas.

Em curto espaço de tempo, o executivo e o legislativo ofereceram algumas respostas a demandas da população que vinham sendo postergadas. Estabeleceu-se um quadro atípico, no qual agentes sociais, via de regra deslocados da cena política, fizeram-se ouvir.

A voz das ruas, emitida de forma ampla, porém difusa. De modo inopinado, porém contundente. Desorganizado, porém incisivo. Sem direcionamento preciso, mas produzindo ressonancia e se fazendo ouvir, permite-nos inferir que as manifestações públicas, apesar de suas precariedades do ponto de vista organizativo, apresentaram inegáveis potencialidades criticas.

Ao mesmo tempo em que deram mostras de imaturidade, expuseram, a olhos nus, a tibieza, temores, hesitações e vacilações de forças políticas de maior tradição e  envergadura, com acumulos organizativos, mais habilitadas a promovê-las.

Utilizando-se de novos recursos técnicos e de linguagens cifradas, movimentos, que se mantinham em estado latente, tornaram-se públicos e involuntariamente, de modo anárquico, concitaram ao exercicio da participação e da representação direta. Deste modo, as manifestações coletivas e públicas, com seus desdobramentos controversos, abriram  condutos por meio dos quais se diseminaram e amadurecem embriões de democracia direta. Contrarrestam instituições politicas, hegemonizadas pela ideologia liberal, em franco processo de degenerescencia.

Este novo terreno, no qual ganhou corpo a participação e da representação direta de diferentes agentes sociais, mostrou-se fecundo para que a democracia germinasse e se disseminasse impulsionada por novos apelos.

Este quadro social acentuou a importancia a organismos de participação e representação coletiva em todas instancias da sociedade civil, principalmente em instituições políticas afetas ao funcionamento do Estado. Articula a ebulição social com a necessária intervenção destes organismos de representação popular na elaboração de políticas públicas.

Sob este viés, a discussão academica, centrada em marcos previamente definidos, em categorias de análise e em registros contestados por novos fatos empiricos mostra-se frágil.

democracia efetiva, bem como da ampliação e consolidação de direitos sociais, alguns previstos em lei.

Os fatos recentes denunciam que reproduzimos, em menor escala, a democracia de elites, schumpeteriana, realizada por especialistas que manejam processos parlamentares e normas sem a possibilidade de intervenção efetiva da sociedade civil. É oportuno ressaltar, que a ebulição social rompeu com a apatia do Executivo e do Legislativo.

Num curto espaço de tempo, parlamentares e governantes, colocados sob pressão, imprimiram celeridade a sua atuação e atenderam minimamente a anseios da população.

Por parte dos governos há vários fatores que dificultam o atendimento de demandas. Desde contingenciamentos financeiros até efetivo compromisso político. Neste amplo espectro de dificuldades, inserem-se obstáculos burocráticos de natureza formal, até entraves informais decorrentes do desempenho de um corpo de funcionários que ao invés de facultar a realização destas ações, trunca o atendimento de demandas básicas da população e convertem um direito num favor, muitas vezes em troca de beneficios pessoais.

Estas relações verificam-se em contexto politico sob hegemonia liberal. No qual prevalecem ambiguidades que distanciam objetivos nominais de práticas efetivamente democráticas.

Deste modo, além das justas reivindicações atinentes às condições de vida, os movimentos sociais devem atentar para empecilhos burocrático, criados artificiosamente para postergar ou anular seus reclamos. 

As instituições sociais são dinâmicas, consubstanciam processos históricos e transformações operadas em sociedades diversificadas e complexas.

Instituições de sociedades tradicionais, sedimentadas em valores culturais provenientes de mitos e de crenças são menos suscetíveis a mudanças. Cristalizadas, tendem a reproduzir mecanismos seculares de autopreservação. Sociedades modernas estão sujeitas a forças motrizes centrifugas que diversificam motivações sociais, criam artificiosamente novas demandas e impõem a necessidade de transformações em  esferas da vida pública. Assim são as chamadas sociedades contemporâneas ocidentais.

As instituições sociais modernas reproduzem a lógica e a dinâmica do sistema sócioeconomico, da economia de mercado, que se tornou dominante no mundo ocidental. Em nome da eficiência admistrativa e  da rentabilidade economica instituiram valores, métodos, rotinas, normas de funcionamento, estamentos funcionais e hierarquias que assegurassem a consecução deste processo.

Porquanto, algumas práticas democráticas prevaleçam em instituições públicas, na esfera privada, a representação e a participação nas decisões afetas ao funcionamento de empresas são pouco comuns.

Max Weber ( 1999 ) examinou estas instituições, a racionalidade administrativa requerida pelo capitalismo e o papel exercido pelos estamentos burocráticos.  Apontou a crescente participação da burocracia no aparelho de Estado, em instituições públicas e pricvadas. Examinando o desempenho da burocracia alemã na década de 1910, observa que esta categoria social tave ascendência e adquiriu legitimidade por meio de normas compreensiveis, de metodos de organização e de racionalidade administrativa que conferiam racionalidade às atividades sob sua intervenção..

A burocracia, assim compreendida, se desenvolve plenamente em comunidades políticas e eclesiásticas apenas no Estado moderno, e na economia privada,apenas nas mais avançadas instituições do capitalismo. A autoridade permanente e pública, com jurisdição fixa, nãoconstitui a norma histórica, mas a exceção (...) [1]

Sugere que a busca da eficiência, impessoalidade, a distinção entre a esfera pública e privada, a legalidade, a formalidade, a transparência, entre outros atributos confeririam importância ao trabalho burocrático e legitimidade à burocracia. Em sua análise ganham relevo as noções de sistema eficiente e de dominação legítima, ou seja, a ascendência por mérito e o poder exercido pela hierarquia burocrática, fundado em normas precedentes que têm como escopo resguardar a eficiência e a lisura de processos administrativos.

Weber examina o papel da burocracia na vigência de regime de transição republicano na Alemanha, no qual a democracia, seguramente, não era valor preponderante.

Sua análise não incide sobre a relação entre burocracia e democracia, primando pelo exame da eficiência administrativa. 

Convém ressaltar que este propósito não se consuma de forma mecanica e incondicional.

A contextualização histórica permitir-nos-á  apontar desempenhos controversos da burocracia.

Sujeita a diferentes motivações e variáveis de desempenho, a atuação da burocracia é passível de distorções. Sob este viés, podemos argumentar que, em instituições públicas, a busca de compatibilidade entre meios e fins com o objetivo de  viabilizar a eficiência administrativa nem sempre se desdobra em prol do benefício público. 

Na atual conjuntura, evidencia-se o crescente descompasso entre o previsto no estatuto da burocracia, alojada nos poderes públicos, e os resulltados de suas ações.  Avulta  a racionalidade instrumental de alguns estamentos burocráticos. Aplicada à administração de instituições públicas provoca desgaste e prejuízo de sua função social. Portanto, a atuação da burocracia não prima necessariamente pela eficiencia, pela legitimidade e pela racionalidade administrativa, muitas vezes desdobra-se em efeitos controversos.

A burocracia tende a se converter num corpo autonomo enquistado no aparelho de Estado. Graças a mecanismos, rotinas e expedientes artificiosos desprende-se de compromissos públicos. Ao invés de prestar serviço público, converte-se em fonte de dividendos privados obtidos de diferentes modos.

A burocracia em sentido amplo, não se reduz aos diversos estratos do funcionálismo público que atuam deste modo. Abrange escalões superiores dos poderes públicos que se valem de diferentes artificos, cristalizam poder de decisão e de execução de ações efetuadas em nome do Estado. Beneficiam-se do aparato estatal para voabilizar interesses restritos avessos à função pública e à destinação social de suas políticas.

Diversamente do que sugeriu Weber, a burocracia em algumas sociedades contemporâneas, comporta-se como corpo estranho dentro do aparelho de Estado. Atua como se fosse organismo vivo, autonomo e dotado de motivações que orientam seus procedimentos para a realização de objetivos próprios.

Esta conduta da burocracia, em maior escala, é análoga a de altos escalões do governo e de parlamentares no poder legislativo. Sob esta ótica pode se estabelecer homologia entre a crescente autonomia, disfuncionalidade e distorções da burocracia atuantes em instituições públicas e práticas de integrantes do poder executivo e legislativo, que se desprendem de normas e rituais democraticos, para atuar em causa própria.

Como entidades estanques, servem-se de instituições públicas como plataformas para a realização de interesses que colidem com a função precípua destas entidades.

Numa acepção mais ampla e abrangente poderíamos incorporar integrantes de todos escalões dos tres poderes nesta categoria de análise, a burocracia estatal.

Conjecturar que parcela significativa desste amplo contingente de burocratas, não serve ao público, serve-se dele.

Portanto, instituições políticas e públicas veem-se a mercê deste desvio de conduta, de drástica inversão de objetivos e de valores. Em decorrência de processo político recente, esta situação se agravou. A lógica privatizante impulsionou a sistemática degradação da função social e da destinação publica de serviços. Neste contexto, algumas instituições tornaram-se refens de uma cultura que condensa deformidades da burocracia estatal. Ao invés de viabilizar o serviço público e promover o direito social, parte expressiva da burocracia estatal apropria-se do espaço público e instrumentaliza seus recursos para viabilizar seus interesses restritos

Parlamentares, governantes e juízes, certamente, não se vêem como parte de estamentos burocráticos. Um conjunto de dessemelhanças joga em favor deste viés subjetivo. Estas desemelhanças se acentuam quando identificamos prerrogativas e de privilégios conferidos a esta pleiade de servidores públicos. Colocam-nos em patamares acima dos marcos de direitos comuns a todos cidadãos.

Esta linha de argumentação, ao invés de negar potencialidades do Estado, das instituições, servidores e políticas públicas adverte para sua importancia e para a urgência de sua revitalização, de sua democratização. Introduz componentes críticos na análise que impõem acompanhamento, controle, participação direta, representação organizada, sistemática, permanente e democrática de toda sociedade civil nos três poderes públicos.

Os conselhos e colegiados são organismos basilares de participação, de representação e de interlocução com poderes legislativo e executivo, respectivamente, responsáveis pela aprovação de leis e sua execução, viabilizando, deste modo, direitos sociais previstos em políticas públicas.  

A constituição democrática destes conselhos é condição primordial para sua atuação efetiva. O requisito democratico credencia estes organismos à participação em instancias de elaboração e deliberação de diretrizes de políticas públicas como legitimos representantes de segmentos organizados da sociedade civil.

Os colegiados não podem ser vistos como confluencia ou a soma de vontades residuais, de inclinações individuais descoladas dos segmentos que representa.  

Contudo, observamos que alguns procedimentos, questionados na eleição e na composição dos legislativos, também se reproduzem na formação de conselhos e de colegiados. Assim sendo,  organismos basilares de representação coletiva também apresentam limitações e vicios que prejudicam sua atuação. Em tese vocacionados para o exercício da democracia e para a defesa de direitos coletivos, muitas vezes se transformam em plataformas para o transito político e a promoção de interesses restritos.

Estes desvios de comportamento agravam dificuldades decorrentes da falta de algumas  condições indispensáveis para a efetiva atuação dos conselhos.

Impõe a articulação entre gestão pública e representação democrática na formulação de diretrizes para políticas sociais.

Exige que o funcionamento dos diferentes institutos públicos esteja submetido ao crivo democrático dos reais interessados em seu desempenho. Esta é diretriz básica para discussão, formulação e execução de políticas públicas. Ressaltam, portanto, a importancia do papel de organismos basilares de representação coletiva, responsáveis por estas tarefas eminentemente democráticas, os conselhos e colegiados.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG



[1]  WEBER, Max. Economia e Sociedade, 2 v. Brasília: UnB, 1999, p 139


Data: 23/07/2013