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Artigo - Os filhos de Maria Papuda: os homens que dizem bom dia

Wagner Braga Batista

 

Em Belo Horizonte desperto as manhãs e o frio. Antes que surjam os primeiros raios de sol, saio às ruas. Compulsivo frequentador do Parque Américo Renée Gianetti, absorvi contagiante vício da convivência. De privar privações de homens que sentem frio.

Como eles, ansioso, aguardo conjuntamente a abertura das portas do Parque Municipal .

Exercitamos coisas distintas. Expressivo contingente de moradores de rua exercita a vida em condições adversas. Eu, apenas caminho e penso.

Ali, no parque, reina a vida em Belo Horizonte.

 Enquanto esta gente sofrida, emaranha-se no ofício de viver o imprevisível, regulo os passos, o tempo  e olhar.  Com liberdade irrestrita posso observar a manhã e as adversidades destes homens que por elas se locomovem.

De onde vem? Não tenho certeza.

Saem de onde o onde não existe. Surgem da noite e do frio como se as adversidades fossem parteiras de sua humanidade. Brotam do medo e da insegurança diante do momento  seguinte. Apressados acordam o dia. Despertam o sol para que venha aquecer suas manhãs imprevisíveis.

De onde vem esta gente?

São homens e mulheres com  a pele crestada, com o corpo sujo e mal vestido, exalando cheiros que nossas narinas não identificam, que a língua culta não conceitua e a educação escolar não reconhece.

Não pertencem a etnias, a estatísticas, a tribos urbanas ou a políticas públicas. Possivelmente não pertençam a moradias onde moram outros homens, nem ao cadastro de eleitos para o almoço ou jantar na hora marcada.

Se são eleitores, não sabem. Nada elegem, nem disputam direitos porque sequer os conhecem.

De onde vem esta gente?

Chegam de condições de vida degradantes, de ritos de exploração, de encantamento que transformaram criaturas execráveis em governantes, parlamentares, juízes e príncipes. De magias que aviltaram virtudes de seres desfavorecidos.

Chegam de estórias fraudadas, de circunstâncias opressivas plasmadas como crônicas do  inevitável.

Saem dos bolsos de políticos corruptos, de sentenças judiciais injustas prolatadas por homens de bem, de gabinetes de servidores públicos transformados em bureaus de negócios privados.

Chegam das ausências de plantões médicos e de salas de aula vazias.

Saem de relações promíscuas e da conivência de administradores de instituições públicas com servidores  desonestos.

De onde vem esta gente?

Perplexo, me pergunto.

Caminhando, dou vazão ao meu exercício de inconsciência por meio do qual, extasiado, observo a maravilha da vida e me sinto aliviado das inquietudes que a própria vida me provoca.

No Parque Municipal me vejo nestes homens. Em homens que sentem frio, que neste logradouro acolhedor, recolhem seus primeiros raios de sol, bebem água potável e vivenciam o direito social de utilizar sanitários públicos.

Como um flâneur militante, observo e admiro suas rotinas.

São essencialmente gregários e partilham o pouco que têm. Seus temores, inseguranças, apreensões, além do  aguardente, que os aquece durante frias noites serranas.

Eu, apenas, observo e me vejo à mercê das angustias, inquietudes e contradições.

Nesta cidade tão linda, repleta de árvores e de jardins, com extraordinária luminescência, que faz do azul uma infinitude, que transgride seu mais longínquo horizonte, deparo-me com zonas sombrias.

Nesta cidade em que a religiosidade, a cultura de negros e de índios deitaram raízes e que os rios dão nome às ruas, vejo-me a mercê da frivolidade e da indiferença onde reinam shoppings e vitrines.

Em Belo Horizonte, também dobro esquinas.

Além dos parques, defronto-me com praças amplas e ornadas de gente. Estranhamente circundadas por coisas caladas e disformes, que nada dizem. Com seu colossal silencio roubam a visão das praças.

São majestosos espaços vazios repletos de coisas e de consciências subtraídas de homens bem vestidos. São espaços nos quais eclode estéril metamorfose por meio da qual mercadorias se transformam em homens e anulam suas vidas.

Mas, de onde vem esta gente, que não emerge de shoppings e de vitrines?

São filhos de Maria Papuda, uma das primeiras excluídas desta cidade. A negra portadora de bócio, violentamente expulsa de seu cafuá no Curral Del Rey, que deu origem à cidade.

Arrastada de seu casebre, despojada de seus pertences, enlouqueceu ao assistir o fogo consumir suas parcas esperanças de vida.

Só lhe restaram a memória e insolentes vaticínios dirigidos aos que a molestaram. Só subsistiram agouros de quem padece em vida a condenação dos deserdados, imposta pela pobreza e pela miséria.

Hoje, sua maldição assola governantes e contamina a modernidade. Compromete a estamparia de uma cidade excludente que se mostra asséptica. Que, a contragosto, convive com o infortúnio desta gente suja e empobrecida pela sua e pela nossa História. Da História desta gente que milagrosamente sobrevive em meio a tantas adversidades.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 02/08/2013