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ARTIGO - As duas graças e duas mortes de Maria, mãe de Jesus

As duas graças e duas mortes de Maria, mãe de Jesus

Wagner Braga Batista

 

Em Minas Gerais tomamos conhecimento da exitência de ordem religiosa constituida no século XVII. Sua vocação é promover a boa morte. Inspira-se em Maria, mãe de Jesus.

 

Esta ordem religiosa afirma que Maria não faleceu. Apenas dormita.  Neste tranquilo sono dos justos, não padece das tentações, as angustias e as inquietudes provocadas pela vida.

 

A Irmandade da Boa Morte surgiu no ano de 1725. Formada por leigos, desejosos de morte tranquila e serena, irradiou-se por doze localidades mineiras. Atualmente subsiste nas cidades de São João del Rey e Barbacena.  No mês de agosto estão concentrados seus festejos e solenidades.

 

Ainda hoje, seus adeptos acreditam que mulheres e homens pios, penitentes e justos estarão isentos das aflições relacionadas à morte e não serão assolados pelos demônios no leito funebre. Estarão livres do tormento de insolúveis ruturas que separam sentimentos em vida da leniência da morte. De sentimentos dolorosos que acometem seres humanos em vida e os conduzem à prematura morte.

 

A Biblia descreve Maria como a virgem que concebeu Jesus. Que padeceu por sua imolação e se deixou consumir por inabalável amor ao seu filho.

 

Numa apropriação livre da narrativa biblica, Colm Toibin, escritor irlandes, relata o drama e a humanização de Maria causada pelo remorso de não assistir ao seu filho supliciado e morto na cruz [1]

A leitura do texto suscita a idéia que Maria obtivera duas graças: ser mulher e mãe. Por conta destas venturas dera luz ao Cristo.

 

Porém,  Maria também teve infortúnios e duas mortes em vida.

 

A primeira ao abandonar seu filho na cruz. A segunda ao adotar indeclinável mutismo como consolo.

Deste modo, Maria renunciará duas vezes à memória e à própria vida para encarnar traficamente a dor que a dilacera e a consome..

 

Seu infortúnio inicia com a percepção do significado e do alcance social das pregações de Jesus. Intimamente, sabe que seu filho professa a justiça em meio à iniquidade. Reconhece a grandeza desta ação, porém não ignora sua vulnerabilidade diante do poderio dos que os oprimem.

 

Fustigada pela apreensão diante do proselitismo do filho, retrai-se. Teme pela sua sorte e pelo destino de seu filho.  Receosa, procura distanciar-se de relações conflitivas, porém não consegue se manter à margem da hipocrisia e do rancor dos fariseus, bem como da ira punitiva dos opressores romanos, alvos de suas parábolas e críticas.

 

A tragédia anunciada se consuma com a traição, com a prisão, com as torturas e com o martirio de Jesus.

Temerosa de ser igualmente supliciada e morta pelos romanos, refugia-se. No entanto, não consegue aplacar sua angustia materna.

 

Perseguida pelos fariseus, premida pelo medo,  Maria, humanamente, tranca-se em seu silencio, em sua inconfessavel dor. Impotente diante do martírio do filho, fecha-se em si mesma. Abriga-se numa dor silenciosa decorrente da morte do filho.

 

Seu sofrimento irá se acentuar com o assédio de dois apóstolos, sequiosos de resgatar a memória de seu filho para compor um novo evangelho.

 

O conflito entre a trágica lembrança e a supressão da memória rouba-lhe o sono. A vã tentativa do esquecimento da tragédia, aguça sua dor e  vergasta sua existência como um látego: A memória varre duramente meu corpo, como meu sangue e meus ossos.

 

Apesar do silencio, sua angústia ressoa. O timbre rouco de seu coração desolado impede seu sono.

Humanamente, Maria vivencia a dor conferida pelas suas graças de ser mulher e mãe. Vivencia a dor de todas mães.

 

Chico Buarque captou com muita propriedade o sofrimento provocado por  insolúveis ruturas:

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

 

Se tragédia é irreversível, os sentimentos humanos não o são. Sedimentam-se muitas vezes por meio do infortunio e do drama. Mas exigem o reconhecimento de sua autenticidade, de sua efetividade e de sua verdade.

 

Aí residem a singeleza e a grandeza do amor materno

 

Um amor que se transmuta em sofrimento na vida de tantas mães.

 

Ciosas do peso avassalador da memória, impotentes ante tantas evidencias dos suplicios causados aos seus filhos, insistem, com todas suas forças, no reconhecimento do amor aos seus filhos. Desejosa, talvez, de vivenciar uma derradeira verdade.

 

Esta é a dor que, hoje, torna-se pública em nosso país. Que impõe o resgate da memória de todos que padeceram e padecem horriveis flagelações.

 

Não podemos continuar mutilando ardilosamente a vida e os sentimentos de familiares de presos políticos, sequelados ou desaparecidos durante a ditadura militar. Continuar privando mães brasileiras do direito à memória de seus filhos.

 

Ainda que dolorosa seja, é preciso restaurar a verdade destes fatos deploráveis para que  estas mães não sejam eternamente condenadas ao martirio do silencio.

 

Que, assim como Maria, não padeçam exaustas e insones duas mortes em vida.

 

Dedicado à mãe de Alberto Magno e a todas mães que ainda sofrem silenciosamente pelas convicções de seus filhos

 



[1] O testamento de Maria, São Paulo, Companhia das Letras, 2012


Data: 08/08/2013