ARTIGO - A Gaveta A gaveta Wagner Braga Batista
As
noites insones devoravam-lhe por dentro..
Abandonara
antigos hábitos domésticos, a meticulosa contabilidade dos ganhos diários, às
vantagens obtidas à custa da desgraça alhei. a leitura de jornais que lhe pareciam indigestos, bem como
deixara de assistir noticiários na TV . Molestavam-lhe
com recorrentes denúncias de crimes de colarinho branco, de corrupção, de
prevaricação, de compadrio, de
improbidade administrativa, de malversação e desvios de recursos públicos. Para
se livrar deste desconforto, tentava adormecer..
Percebera
que os dias tornavam-se mais curtos e as noites cada vez mais longas. Seus
ouvidos, acostumados à sinfonia
minimalista, incessante e impertinente
do relógio de cabeceira, ressentiam-se de palavras de alento. Já não sonhava, quando conseguia adormecer era
assolado por pesadelos horríveis que reproduziam seus pesadelos diários: a
propina furtada por um larápio, o apadrinhado que praticara peculato, o pobre
homem vitimado por mal súbito que não resistira à longa espera pelo
atendimento, o auditor que recusara deferencias para sua esposa, o chefe
imediato batendo à sua porta para exigir um bode expiatório.
Inúmeros
pesadelos, repetiam-se à exaustão.
Há muito
se abstivera da convivência social. No
entanto, sua dificuldade de reconhecer amigos era compensada pela argúcia de
perceber bnes negócios. Por estes tortuosos meandros transitava lépido e sorrateiro
como serpente em labirinto.
Privado
de sono e de sonhos, resolvera se abster
de comer. Seu intestino rugia. Supunha tratar-se da gula, da voracidade por negócios, do apetite pela
licenciosidade. Talvez suas convulsões noturnas fossem causadas pela dificil
digestão de acontecimentos diários . Talvez decorresse da avidez por negócios,
da ganancia por lucros, da avareza desmedida, da mesquinharia no trato com semelhantes, da
sordidez no serviço público. Diante de tantas conjecturas, apesar dos gases e
da gastrite crônica, aliviava-se ao perceber que se escaparia ileso de diagnóstico médico.
A digestão
tornava sua vida ainda mais dificil.
Sem
dormir, esquadrinhava paredes do quarto, o tamanho do escuro, as frestas da
porta, os seus desatinos e, de repente se dera conta que a distancia de seus pés até a cabeceira da cama
diminuia visivelmente. Parte de seu corpo estava sendo consumida do dia para a
noite.
Horrorizado,
recolheu-se sob os lençóis.
Aos
sobressaltos, não sabia o que fazer. Defrontava-se com incompreensível autofagismo contrário a suas crenças e
convicções. Desde jóvem, fizera irreversivel opção por crescer na vida. Ascender,
mandar e usfruir de todos os privilegios que as desigualdades sociais asseguram
Por que
tudo isto estaria acontecendo? Tudo que
fizera em vida fora para crescer. Suas ambições resumiam-se numa só. Crescer, crescer indefinidamente.
Inicialmente
assustou-se.
Ao se
ver apequenado imaginou o espelho turvo ou sujeito a alguma deformidade ótica.
Com o passar dos dias, após insistente e penosa dúvida dobrou-se às evidências
dos espelhos e à constatação que seu corpo diminuía rapidamente.
Seu
rosto escoimado, também se desfigurava. Ao invés de crescer, definhava. Mergulhado
neste insuportável dilema tudo fazia para ignorá-lo. Desviava o olhar do que lhe dissesse respeito
sem conter a indescritivel sensação de angústia, de medo e de repulsa a si
mesmo. Aturdido procurava a penumbra. Sua sombra
e seus traços lhe perseguiam.
Transformavam-se em espectros que acompanhavam seus passos, suas rotinas.
Desde
então, repelia sua própria imagem. Seus retratos foram retirados de portais, varridos de estantes e subistiam apenas como exigencias legais, associadas a números de prontuários de identificação. Talvez, sua existencia agora se reduzisse apenas a isto, a estes números de identificação remanescentes. Evitava
o espelho. Qualquer introspecção tornava-se incomoda. Se antes, um simples
exame de consciencia lhe fustigava, agora se convertera-se numa insoluvel sinistro. Se pudesse não teria rosto, identidade e presença. Transitaria imperceptível entre móveis, papeis e adereços da repartição pública. Deste modo, liberto de constrangimentos, poderia se dedicar ao que sempre fizera às escuras. Mas o
tempo é atroz. Tanto fizera para crescer e, de repente, diminuia. E o tempo, inclemente, contabilizava sua atrofia. Chegava
ao trabalho, já não conseguia colocar os pés no chão. A cadeira se tornara mais
alta e o seu bureau ficava mais distante.
Aos
poucos passou a desconhecer seus instrumentos de trabalho. Seus olhos não
enxergavam mais objetos de uso comezinho e, tampouco, visualizavam os objetivos de sua função. O público, ao qual destinaria seu serviço,
tornara-se o corpo estranho e abjeto que sempre fora para si.
Suas
mãos, no entanto, continuavam ágeis e habilidosas. Como se tivessem faro nos dedos, identificavam
facilmente envelopes, dinheiro vivo e remetentes anônimos.
Para
quem só pretendia crescer, a altura agora causava vertigem, as pernas pensas
sobre cadeiras, o chão fugindo aos pés e a sua identidade parecia-lhe lançada ao
abismo.
Num
exercicio de memória lembrou-se que quando criança assistira a um filme de
terror.
Nele, o
personagem, sujeito à radiação atômica, apequenava-se ao ponto de se converter
num minúsculo homem, presa fácil para os gatos.
Assim se
via. Apequenado e à mercê de gatunos ocasionais e metamóficos prestes a tomar
seu cargo, beneficiar-se de suas vantagens, ocupar seu bureau, seduzir sua clientela anônima, locupletar-se com seus
negócios e surrupiar suas propinas.
As
apreensõe aguçavam seu drama. Poderia apequenar-se, não importa. Mas ser
surrupinado deste modo, não. Tratava-se de uma covardia.
Apequenado,
tentava escapar de armadilhas que própria vida lhe impusera. Insone, perambulava pela casa vivenciando
antecipadamente angustias do dia seguinte.
Lembrou-se
que tivera filhos, mas não se recordava seus nomes. Que um dia amara alguém. Quem?
Que possuira um cachorro e até um amigo
de infância.
Sozinho,
sofria intimamente. Em silencio.
Refém
das circunstancias, já não podia evitar os ardis e o assédio ameaçadores.
A crise
de identidade adensava em seu minúsculo corpo. Ora se via como homem, talvez um rato. Em momentos de confusão
mental, um e outro, simultaneamente. Debatiam-se como se estivessem numa
ratoeira. Sofregos, atormentados, homem e rato cediam ao doloroso
e confortável cansaço. Resignavam-se ante à irremediável inanição e quiça à morte.
Aos
poucos, não se via mais no serviço público. De fato, lá nunca estivera. Vivenciára, isto sim, artimanhas, a ascensão
funcional a qualquer preço, o bypass, as omissões contínuas, as gratificações
licenciosas, os favores consentidos, as licitações benemerentes, os cafezinhos
regados a acordos adocicados, o desprezo por homens e mulheres necessitados que
batiam a sua porta e o jogo de interesses que promiscuía a repartição pública.
Dia a
dia, seu corpo definhava, como definhara sua consciência.
Enfim,
sumiu.
Não se
sabe o que ocorreu.
Fora se
tornando cada vez mais imprestável, imperceptível.
Convertera-se naquilo que inconscientemente desejara ser. Pequeno, minusculo,
desprezível, nada.
Não se
sabe seu fim.
Um dia
para se preservar de todos e de si mesmo, furtivo, escondeu-se no envelope no
qual guardava seus clientes anônimos e suas propinas.
Na
repartição, os anos se passaram sem que ninguém sentisse sua ausência.
Mudaram
os dias, os calendários e as vidas ao redor. Inalterados permeneceram os bureaus,
as rotinas, os olhares para além das janelas da repartição e aquele envelope
incólume.
Soprado
pelo vento, jogado ao chão e varrido como coisa qualquer quase foi lançado ao
lixo. Uma alma providente sugeriu que fosse colocado numa gaveta.
Qual?
Uma
gaveta qualquer.
E assim,
não se sabe se foi roido pelos ratos, comido pelas traças, absorvido pelo mofo ou
consumido pelas próprias propinas.
Na
escuridão, desapareceu. Ninguem sabe como.
Sua realidade
e ficção tornaram-se depositárias de uma
gaveta. De uma gaveta qualquer. Data: 14/08/2013 |