topo_cabecalho
Artigo - Os sapatos democratas

Wagner Braga Batista

 

 

Vejam só,  caros amigos.

 

Descobrimos recentemente que existem sapatos democratas.  Não por tradição familiar, crença na democracia ou convicção no seu ideário.

 

Trata-se de uma marca antiga que ressurge no mercado de calçados.

 

Por favor, mais não me perguntem, porque mais , não sei. .

 

Como advertimos acima, os calçados são democratas, porém não são convictos.  Não tenham ilusões seus eventuais usuários.

 

Diversamente da manipulação publicitária, que sugere a jovens incautos a incorporação a idotice de seus idolos por meio de marcas e produtos que veiculam, os sapatos democratas não induzem comportamentos.

 

São politicamente honestos.

 

Nada prometem, nada se dispõem a cumprir.

 

Advertem que, por osmose, seus usuários não absorverão principios, valores e condutas democráticas. Tampouco se sentirão seguros para avançar rumo à consolidação da democracia em nosso país.

 

Seus fabricantes salientam que não avalizam a consciência política de seus usários, nem tampouco seus passos. Descartam, também, a possibilidade de que sapatos democratas proporcionem serena caminhada em direção ao reconhecimento e a ampliação de direitos sociais.

 

São democratas conotativos, porque assim foram chamados.

 

Por esta denominação aleatória, durante o regime militar, seus fabricantes foram perseguidos. Após duras ameaças, viram-se na contingencia de utilizar um recurso estratégico.

 

Para evitar novos constrangimentos, sequestros, carceres clandestinos e torturas, seus fabricantes mudaram o nome dos calçados. Acomodaram-se e se resignaram aos novos tempos.

 

Assim sendo, desde então, foram anunciados e vendidos nas lojas de calçados com nome pouco comprometedor: Democratas, mais nem tanto.

 

Por meio deste sutil artificio, com muitas dificuldades, viabilizaram-se no ramo calçadista vivendo em meio inóspito.

 

Recentemente, por meio de mostruários, pudemos ter acesso a vários modelos de calçados democratas pouco comprometidos com a democracia, desde 1964.

 

Faremos registro de alguns.

 

Nos anos 1970, no auge do terror, tres modelitos fizeram muito sucesso.

 

Os calçados Brasil ame-o ou deixe-o, em cores verdes, azuis e vermelhas destacam-se em manchetes de  jornais biombos, em reportagens encomendadas e nas propagandas da AERP. Talhado para ocasiões especiais, podia ser utilizado em salas de interrogatórios e sessões de tortura sem risco de manchar, uma vez que era vendido já tinto de sangue.

 

Um modelo delivery, entrega a todo tempo e em qualquer circunstância, denominado Juracy Magalhães, pretendia-se unissex. Em verdade era um modelito precursor de movimentos unilaterais, não soberanos e francamente sintonizados com o american way life.

 

Seus compradores eram brindados com boné, asinhas do Capitão América e uma máscara de Homem Aranha com dedicatória de Robin. Nele, estava grafado o sugestivo lema deste notável movimento: O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.

 

Após o Ato Institucional n º 5, os calçados com maior  aceitação foram os democratas inconstitucionalmente reacionários. Seu design alinhava  canos longos, saltos volumosos, bico arredondado e ferraduras.

 

Os calçados reacionários afirmaram-se como uma tendência da moda retrógrada.

 

Com a institucionalização do regime de exceção surgiu grande variedade de calçados exóticos. Entre eles, reacionários prematuros de tanga roxa, reacionários verdes ruborizados, reacionários autossustentáveis, democratas retro-liberais da linha dura. Uma infinidade de calçados que não tiveram aceitação desejada.

 

Neste contexto, diante da banalização dos calçados reacio-democratas, modelos tradicionais foram muito disputados.

 

Destacarm-se os democratas conservadores, mais raros.

 

De boa cepa, sumiram das vitrines. Foram disputados palmo a palmo, mas foram exaustivamente consumidos no parlamento. Aos poucos, iam sendo substituidos pelos calçados democratas muletas..

 

Hoje, sapatos democratas conservadores são dificilmente encontrados.

 

Ainda são feitos artesanalmente, a duras penas, porque a produção é lenta e dispendiosa.  Muitas vezes falivel e sujeita a falsificações.

 

Este artefato deve ser curtido longo tempo, temperado em condições adversas e costurado com liame resistente, senão afrouxa e se converte no seu simulacro liberal.

 

Estes modelitos, autodenominados liberais, banalizaram-se após a Nova República. Confundiam-se com modelos social-democratas, porém eram mais cediços. Prestavam-se a toda sorte de jogo.

 

Ambivalentes podiam ser usados em atos de corrupção durante o dia e em defesa da probidade em horários vespertinos. Se a agenda ainda permitisse, poderiam servir também a eventos obscuros e à ostentação em falcatruas de governos.

 

Seu talhe indefinido, seu estilo versátil e sua ambivalência favoreciam seu desempenho em todas circunstancias.

 

No entanto, os modelitos liberais apresentaram inúmeros problemas.

 

Confundiam seus usuários. Ambiguos, postavam-se frente a ladeiras e escadas sem rumo. Não sabiam se era vantajoso  subir ou descer.

 

Preferiam transitar em bolsas de valores, agencias financeiras, instituições bancárias e cassinos, onde o perde e ganha dava vazão a sua ambições, versatilidade política e desejo de visibilidade..

 

Causaram perdas para os fabricantes e  incidentes irreparáveis para sua clientela. Eram escorregadios, causavam tropeços e mudança de pés. Era comum ver o sapato esquerdo ser calçado à direita e vice-versa.

 

Nas ruas deixavam homens e mulheres descalços.

 

Soltavam o salto, descolavam a sola e deixavam todo mundo na mão. De fato, tornou-se um modelito pouco confiável.

 

Desacreditados, os sapatos democratas liberais foram retirados de circulação.

 

Tornaram-se démodé e redesenhados à feição dos novos tempos. Incorporaram traços e formas dos calçados social-democratas, foram reciclados e ajustados a uma nova cultura da exuberancia e da promiscuidade política.

 

Neste universo, afirma a nova tendência alavancada pelos insinuantes calçados reacionários pós-modernos, que podem ser utilizados em qualquer espaço volátil, ambiente acadêmico e em todas estações.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 15/08/2013