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Artigo: Retratação institucional a alunos, ex-alunos e professores da UFPB

Retratação

Em 1999, as unidades acadÊmicas e demais setores da atual UFCG integravam a estrutura da UFPB. Por iniciativa de comissão de anistia, constituída na instituição, o Conselho Universitário promoveu a retração formal e publica a todos seus integrantes punidos por medidas excepcionais e arbitrárias do regime militar.

 

O parecer que segue foi elaborado pelo Professor João Otavio Paes de barros, à época,  Professor do Departamento de Economia e FinanÇAas, representante do Centro de Humanidades , do campus II, neste Órgão de deliberação superior da UFPB..

 

È um registro significativo da luta em defesa dos direitos civis e das liberdades democráticas na universidade brasileira.

 

Wagner Braga Batista

 

 

HISTÓRICO

 

Os fatos que necessitamos conhecer e avaliar neste processo fazem todos, parte de período particular da história da sociedade brasileira que tem início marcado pela quebra da Ordem Institucional Democrática Vigente, por um golpe de Estado e pela instalação de uma ditadura militar.

 

Em verdade, sabemos todos que essa irrupção do arbítrio, pela força das armas, teve causa motora na vontade de interromper, abortando processo social lento, que, desde há muito, vinha desenvolvendo e gestando, dentro da democracia, um novo modelo de desenvolvimento econômico e de participação política e econômica na sociedade, agregando grupos sociais muito mais extensos que aqueles prevalecentes até então.

 

Tratava-se, portanto, da inclusão, na sociedade, como atores políticos e beneficiários do sistema econômico, das amplas massas de brasileiros que, até então, viviam praticamente à margem da política nacional, excluídos do benefício dos resultados obtidos pelo esforço de todos.

 

A ditadura militar, e a ordem por ela implantada, foi uma reação, um dique de contenção que se montou, para obstruir a crescente vontade popular de participar na definição dos rumos da nação e de, mais democraticamente, os frutos do trabalho.

O novo regime desmontou o estado populista que o antecedeu, organizações populares foram reprimidas, partidos políticos extintos, lideranças políticas, onde quer que atuassem, foram afastadas. Muitos, torturados, exilados e mortos. No meio universitário, estudantes e professores foram presos. A UNE foi fechada e muitas Universidades sofreram intervenção.

 

Não restou voz dissonante que pudesse oferecer resistência ao novo regime. Foi o que pensaram os que dirigiram, à força, os rumos da história da nação brasileira, no momento que se seguiu à implantação da ditadura militar.

 

A depuração, larga, cruel e intimidadora que sofreu a sociedade, no entanto, não resultou na submissão total dos descontentes, tal como tinham imaginado os que a conceberam e executaram. Poucos anos passados, as manifestações de oposição à ditadura começam a ganhar visibilidade e corpo, com participação de estudantes, políticos, religiosos, sindicalistas.

 

O regime ditatorial vendo seu apoio político esgarçar-se entre parcela da igreja, do empresariado, dos estudantes e da classe média em geral ao tempo em que principiava um conjunto de movimentos de reorganização das forças de oposição, reage com uma brutalidade até então inigualável. Os instrumentos legais criados para tanto foram o Ato Institucional N° 5 - AIS procuraram dar uma cobertura legal à eliminação das garantias aos direitos elementares dos cidadãos, em nome da doutrina de segurança nacional.

 

Na prática e na verdade, implantou-se o arbítrio, o medo, a repressão. A tortura consolidou-se como método de ação dos agentes e aparelhos de segurança do Estado. No âmbito das Universidades, uma série de leis buscou estabelecer um controle bastante rigoroso sobre o que se passava no interior da academias. A mais severa delas, o Decreto-Lei n° 477, de 26 de fevereiro de 1969, punia com demissão, proibição de contratação, expulsão, impedimento de matrícula e banimento do país, no caso de estrangeiros, qualquer ato de professor, funcionário e aluno que tivesse caráter reivindicatório, grevista ou político.

 

Na UFPB, a repressão aos que pensavam e ou agiam de forma independente, começou cedo. Logo nos primeiros dias de abril, em 1964, o Reitor, professor Mário Moacyr Porto, foi afastado do cargo pelo Governo Revolucionário. Em 14 de abril do mesmo ano, em nome do "Comando Revolucionário", o General Comandante da Guarnição Federal nomeou o professor Guillardo Martins Alves como interventor na UFPB. Nesta condição passou, a presidir o CONSUNI, que o elegeu eleito Reitor em 22 de junho de 1964.

 

Não consta ter havido qualquer manifestação de repúdio ou estranheza deste Conselho em relação à absurda destituição do professor Porto. Ao contrário, a eleição do interventor, com 21 dos 23 votos dos conselheiros não pode deixar de ser vista como aprovação do afastamento do Reitor legítimo e da nomeação do interventor.

 

Embora não se conte, até hoje, com o levantamento exaustivo do conjunto de professores, alunos e funcionários vitimados pela intolerância política da época, sabemos que foram muitos os casos.

 

A repressão política na UFPB deixou provas inquestionáveis que estão agregadas ao processo: são os ofícios reservados de número 05 - Gabinete do Reitor Guillardo Martins Alves, de 25 de fevereiro de 1969, dirigido aos diretores de todas as unidades da UFPB, dando conta das punições aplicadas a 85 alunos e ex-alunos, e pedindo cumprimento e o de número 03/881/69 do mesmo Reitor, de l de fevereiro de 1969, dirigido ao General Vinitius Notare, Comandante da Guarnição Federal, informando das providências tomadas - exoneração do Coordenador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, e não renovação dos contratos de inúmeros professores desse mesmo instituto, d;a Escola politécnica de Campina Grande, da Faculdade de ciências Econômicas de João Pessoa, da Faculdade de ciência Econômica de Campina Grande, da Escola de Engenharia, além do sustamento, para averiguação, do pagamento de salário de professores dessas mesmas unidades, como também da Escola de Agronomia do Nordeste e do Instituto Central de Física. São 29 professores atingidos. Completa o ofício, a informação sobre a dissolução dos Diretórios Central e Acadêmicos e a nomeação dos respectivos interventores.

 

O terceiro elemento de prova é a cópia do manuscrito da Ata que relata a reunião do CONSUNI de 13 de março de 1969 onde se lê:

 

"Processo n° 31269/69 em que eram submetidas à homologação do Conselho em relação nominal de alunos e ex-alunos da Universidade punidos disciplinarmente pela Reitoria, de acordo com informações prestadas pelos Órgãos Federais de Segurança e a relação nominal e professores que tiveram seus contratos não renovados ou que foram afastados do exercício do magistério por razões de segurança nacional ou em razão, digo, ou em virtude de outros motivos, tendo em vista relatórios das Diretorias das diversas Unidades de Ensino. Ambas as relações foram aprovadas por unanimidade., Registrando-se entretanto que..."

 

A repressão na UFPB foi mais abrangente do que esses poucos documentos permitem reconhecer. Punições semelhantes atingiram outros estudantes e professores, restando dúvidas sobre se também funcionários teriam sido atingidos.

 

Em relação aos professores, não é muito difícil encontrar-se outros nomes que, não estando em nenhum desses documentos, foram notoriamente vítimas da repressão. Para citar um, cuja evidência aparece como testemunho, transformado em livro pela ADUFPB, temos o professor Jomard Muniz de Brito. Esse professor, além do depoimento escrito, publicou cópia do ofício que o afastou do magistério.

 

Muitas outras vítimas ainda não foram identificadas, seja porque desapareceram documentos que permitiriam fazê-lo, seja porque nos falta uma pesquisa completa.

 

Os anos 70 no Brasil, como um todo, foram anos de significativas mudanças políticas. No seu início, época da mais negra repressão que o país já viveu. Com o passar do tempo, porém, a oposição ao regime ditatorial foi se espalhando e conquistando a consciência de mais e mais brasileiros. O partido em que o regime tinha pensado em acomodar uma oposição pouco combativa e figurativa foi ganhando fôlego, firmando-se como oposição de verdade. Seu respaldo popular foi crescendo. Nas eleições de 74, obteve uma vitória surpreendente. Foram 16 Senadores do MDB contra apenas 5 do partido do governo.

 

Foram da política parlamentar, dois crimes absurdos praticados contra o jornalista Wladimir Herzog e, poucos meses depois, contra o operário Manuel Fiel Filho, promoveram profunda corrosão na confiança e respeito que o governo usufruía. Diante desses assassinatos hediondos, levantaram-se manifestações públicas de repúdio aos crimes da repressão. A sociedade brasileira começava a demonstrar que a ditadura e seus crimes eram intoleráveis. *'-

 

A campanha por uma anistia aparece no programa do MDB em 1972. Em 1974 o movimento feminino pela anistia colheu 20.000 assinaturas, em abaixo assinado. Dessa-data em diante, a luta pela anistia não parou mais de crescer. A Ordem dos Advogados do Brasil encampou-a, enquanto grandes personalidades como Sobral Pinto, Don Paulo Evaristo Arns, General Juarez Távora e outros, vieram ao seu encontro. Em 1977, houve a primeira manifestação pública explicitamente pela anistia em Porto Alegre. No mesmo ano, a SBPC manifesta-se pela anistia dos cientistas cassados. Em São Paulo, organiza-se o Primeiro Encontro Nacional pela Anistia.

 

Todas as conquistas que os setores democráticos da sociedade nacional obtiveram, nestes anos, não foram suficientes para impedir que o governo, temendo perder o controle do Poder Legislativo, fechasse o Congresso Nacional em 1977, e editasse o chamado Pacote de Abril. Foram criados os senadores biônicos e estabelecidas eleições indiretas para Presidente da República e Governador dos Estados.

 

A ampliação do descontentamento com o regime fez com que, em tomo de 1977, a censura fosse relaxada. Em 1978, o governo, buscando manter o controle político de forma menos explicitamente ditatorial, extingue o AI-5, grande instrumento e símbolo do arbítrio. Permitiu-se a tanto, confiando no novo modelo legislativo. Por precaução, instituiu as "Salvaguardas Institucionais" através das quais podia impedir reuniões e prender sem ordem judicial.

 

Em 1978, foi criado o Comitê Brasileiro pela Anistia. O movimento pela anistia ampliou-se mais ainda, quando foi apoiado pela greve de fome dos presos políticos e pela divulgação de carta de princípios da anistia. Da Itália, veio apoio com a realização de uma conferência pela anistia no Brasil de outro lado, a política de direitos humanos do Presidente Norte — Americano, Jimmy Carter, também passou a representar uma força adicional.

 

Pressionado nelo movimento no Brasil, pela perda propressiva de apoio popular, pelas greves operárias em São Paulo, o governo Figueiredo propôs ao Congresso Nacional uma anistia parcial.

 

Em agosto de 1979 uma passeata de 20.000 pessoas pedia, no Rio de Janeiro,, uma anistia ampla geral e irrestrita.

 

No dia 28 de agosto de 1979, o Congresso aprovou a Lei da Anistia. Não era entretanto irrestrita. Os condenados por terrorismo ficaram de fora. As reparações, em algumas situações, seriam examinadas caso a caso. Mas, muitos, enfim, voltaram para casa. Não foi a anistia desejada por todos. Entre outros, foram também anistiados os que, nos aparelhos de segurança, cometeram crimes. De todo modo, a anistia constituindo-se numa grande vitória do povo brasileiro, marco na luta pelos direitos fundamentais dos homens e pela democracia no Brasil, inscreve-se em nossa história de maneira definitiva.

 

Não foi, entretanto, o fim da história da luta dos brasileiros pela construção de! uma sociedade justa e fraterna. Muitas outras conquistas obtivemos desde então, e muitas outras, certamente, ainda virão.

 

PARECER

 

Quem pode ser contra um pedido de perdão por parte de quem cometeu atos absurdos e injustificáveis de prepotência e arbítrio?

 

Quem pode ser contra a tentativa que, para sempre, será incompleta, de reparar o que é irreparável?

 

Quem pode ser contra o esforço de limpar o nome de uma Instituição que, no passado manchou-o indelevelmente?

 

Para nós deste Conselho, não parece haver outro caminho além daquele que nos leva a pedir perdão aos ofendidos e humilhados que, nesse passado, não tão distante, prejudicamos irreversivelmente.

 

Estamos hoje condenado a ficar sempre na esperança de diminuir os danos que os atos desse passado causaram.

 

É provável que eles nunca mais venham a ser totalmente superados. O tempo não volta. Os que foram prejudicados terão hoje sua reparação moral e simbólica. Porém, todo o tempo decorrido, em que eles estiveram punidos e estigmatizados, não poderá ser revertido, o tempo não volta.

 

E nós, corpo dirigente da UFPB, que podemos fazer para nossa Instituição. Corrigir, pedir perdão, hoje, do mal feito ontem, exime a nós, corpo de hoje, desta Universidade, mas não apaga o erro de ontem.

Apesar disso, façamos o que deve ser feito, o que está ao nosso alcance.

 

É comum se pensar, que as arbitrariedades e perseguições políticas da época tenham sido praticadas exclusivamente pelos que comandavam o governo e pelos que estavam, sob suas ordens diretas. Desta forma, a iniciativa e a responsabilidade dos crimes contra os direitos individuais estariam circunscritos a essa alta esfera do poder.

 

Na verdade, tomar conhecimento do que aconteceu na UFPB, é certificarmo-nos, para infelicidade nossa, de que isso não é a verdade.

 

Os muitos pequenos déspotas, que pululavam em meio aos grande da época, cometeram suas próprias arbitrariedades.

 

A Universidade da Paraíba, por meio de seus Órgãos de Direção e dos seus Membros mais ilustres, Reitor, Membros deste Conselho Universitário e Diretores de Unidades, prestou-se ao papel de algoz de seus próprios pares, professores, e daqueles a quem tinha por obrigação, de cuidar e educar: os estudantes desta casa.

 

Vimos eu nossa Instituição, pelas mãos dos que a dirigiam, não se limitou a conviver com o ambiente repressivo que tomou conta do país. Não. Nossas lideranças levaram a UFPB a tomar parte ativa, por sua própria conta e iniciativa, nos atos de arbítrio que se praticavam na época.

 

Muitos, mas não todos, é bom que se diga, muitos dos que tinham poder na época, para decidir destinos de pares e subordinados e tinham, como sempre se tem, uma certa margem de manobras para decidir o que fazer, definir sua opção política, decidiram tomar a dianteira e, por iniciativa própria, exercer o arbítrio impor sua intolerância, punir os que achavam incomodar, pelo simples fato de discordarem. Isso ocorreu aqui, em nossa UFPB. Mas não em todos os lugares. Em outras Universidades foi diferente.

 

Não foram tão raras, corno se pode imaginar, as Universidades Públicas em que suas direções não somente foram absolutamente democráticas no trato interno de suas questões, tendo sabido conviver com a diferença de opiniões e manifestações políticas, como também agiram intransigentemente na proteção dos membros de suas comunidades, contra as tentativas de intromissão da repressão e da intolerância.

 

Esses lugares, onde a liberdade encontrou defensores, parece terem tido a felicidade de possuir dirigentes que, de fato tinham, além do espírito democrático, compreensão profunda e clara das funções e do papel que cabem a uma verdadeira Universidade, em nossa sociedade.

 

Nossa Universidade, casa da educação, da liberdade, da crítica e da tolerância, estabelecidas como método de trabalho e como fim em si mesmo, matriz da formação dos técnicos e cidadãos da nação, foi desvirtuada e conspurcada.

 

A nós, nesse momento, cabe mais do que simplesmente lamentar o ocorrido.

 

Devemos fazer, nesta oportunidade, a crítica desses fatos, e, dela, extrairmos lições.

 

Devemos externar publicamente nossa auto-crítica. Decidir que a UFPB retrate-se dos seus atos naquele período de triste lembrança. Reafirmar, entre nós, em todos os escalões e setores da UFPB, o compromisso irrevogável com a liberdade, a tolerância, o direito à crítica e à diferença, dentro e fora da Universidade. Assim fazendo, estamos mais que simplesmente participando da festa comemorativa dos 20 anos de anistia. Mais ainda do que celebrando a vitória do povo em movimento, consagração da estratégia reta de aperfeiçoamento da democracia e da construção da nação justa e fraterna.

 

A retratação, mais que comemoração é ação, aperfeiçoamento, desenvolvimento da anistia. É seu avivamento.

Damos um passo a frente, completando-a, dando-lhe novos conteúdos, maiores e mais profundos.

 

Assim fazendo, estamos vivenciando, verdadeiramente, a anistia, um objeto em construção permanente, tanto quanto nossa democracia, sempre carente de novas elaborações, e nossa utopia de sociedade.

 

Tudo isso ainda não está aqui conosco, mas deve estar constantemente nos nossos rumos, deve ser nosso plano de viagem.

Neste caminho, nossa mais próxima parada é a retratação que devemos aos que sofreram o arbítrio desta Universidade.

Façamos nosso dever de hoje.

 

Hoje é dia de a UFPB se retratar.

 

Façamos isso para que, no futuro, nunca mais venhamos precisar de outras retratações.

 

É o meu parecer, que submeto à apreciação deste Conselho.

 

João Pessoa, 27 de agosto de 1999

 

João Otávio Paes de Barros Júnior

 


Data: 23/08/2013