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Artigo - A luta pela anistia, ampla, geral e irrestrita em Campina Grande: A anistia parcial, a reparação de injustiças e as Comissões da Verdade (parte 5)

Wagner Braga Batista

 

 

A anistia é um instituto milenar que teve origem na Grécia antiga. Para aplacar a ira e sentimentos belicosos remanescentes, após os sucessivos conflitos entre seus povos, os gregos utilizaram-se da amnestia. Este instituto impunha o esquecimento e impedia vinganças, ações persecutórias e punições por atos praticados durante as guerras passadas. Diga-se, guerra entre povos.

 

No Brasil pós-1964 tivemos confronto assimétrico  entre governos ilegitimos, que capitalizaram o poder coercitivo do Estado de forma abusiva e se muniram de poderoso aparelho repressivo para impedir manifestação crítica de seus opositores, e o povo brasileiro apartado dos  instrumentos de justiça e de canais de representação democrática. 

 

Todo o aparelho de Estado foi empregado para coagir e subtrair do povo brasileiro  elementares direitos políticos.  

 

O conflito se processou de forma desigual e injusta colocando o Estado e os governos autoritários contra o povo sem mecanismos legítimos de participação e de representação social.

 

Neste contexto, após a escalada repressiva emergiui a luta pela anistia que culminou com o projeto de lei faccioso e restritivo.

 

A anistia parcial, pactuada pelo regime militar com a oposição consentida, implicou em duas prescrições contraditórias. De um lado perdoou agentes da repressão  que praticaram sequestros, torturas e assassinatos, de outro não esqueceu ações de presos politicos que resultaram em “crimes de sangue”. Na realidade houve duas anistias distintas. Uma materializando o perdão a crimes contra a humanidade, outra se recusando a esquecer ações políticas de opositores.

 

A dupla e controversa anistia colocou no mesmo patamar os praticantes de crimes hediondos e opositores do regime de exceção, que ousaram resistir ao regime militar por meio da luta armada.

 

Faz-se oportuno mencionar que a anistia não alcançou ações que resultaram em crimes de sangue.

Os crimes conexos foram anistiados e ações politicas não foram prescritas.

 

A anistia não viabilizou o esquecimento das ações realizadas por opositores, porém se mostrou generosa com os que a promulgaram. Os primeiros foram julgados em tribunais militares, os outros ainda sequer foram julgados pela História.

 

Hoje, quando de busca resgatar a História, participes do regime miltar vem a público para alegar que se trata de injustificável retaliação.

 

À luz da atualidade, pode-se afirmar que não houve anistia plena, houve o perdão auto-concedido aos detentores do poder ilegitimo.

 

Convém rememorar que a anistia parcial foi precedida pela deliberada eliminação de opositores.  Deste modo, vários militantes políticos de organições proscritas pelo regime foram assassinatos.

 

Os agentes da repressão eliminaram indiscriminadamente integrantes de diferentes organizações políticas, não apenas daquelas que se envolveram na resistencia armada, mas também daquelas que tentavam se opor pacifica e democraticamente à ditadura, a exemplo do PCB. Salvo dirigentes que se encontravam no exterior, todos os demais foram sequestrados e exterminados em cárceres clandestinos.

 

A ditadura cívico-militar utilizou-se deste procedimento para impedir a recomposição de forças oposicionistas consistentes. 

 

Em 1974, no transcurso do processo sucessório que culminou com a escolha do General Ernesto Geisel, as agencias de informação internas e externas, o SNI e a CIA, já dispunham do  conhecimento que a resistencia armada estava totalmente desarticulada e debelada no meio urbano. A contestação subsistia localizadamente. Seu principal foco encontrava-se distribuida na área rural nas regiões  centro -oeste e norte do país, por meio do que se denominou como Guerrilha do Araguaia.

 

Quando a anistia foi promulgada os governos militares tinham eliminado todos os focos de resistência armada e seus principais militantes.

 

Dia 28 de agosto de 1979, data da votação do projeto de lei da anistia, encontravamo-nos nos balcões da Camara dos Deputados juntamente com familiares de presos políticos e atingidos por medidas de exceção, bem como com dezenas de representantes de Comites e Movimentos Femininos pela Anistia.

 

A presença no ato de votação representava ato explícito de contrariedade frente aos dispositivos do Projeto de Lei de autoria de Petrônio Portela, lider do governo no parlamento. Como assinalamos, a anistia parcial fora articulada e acordada pelo regime militar com integrantes da oposição consentida.

A caravana à Brasilia configurava o desdobramento de inúmeras ações moleculares e atos públicos macivos realizados durante os dias precedentes em várias cidades do país.

 

Em Campina Grande, também realizamos ato público, dia 14 de agosto de 1979, no Calçadão da Venâncio Neiva, denunciando as limitações e as contradições do projeto de lei da ditadura.

 

A aprovação do projeto de lei provocou sentimento controverso entre os presentes na votação.

 

Por um lado, havia dolorosa sensação de fracasso e de desgosto por não termos alcançado a libertação de todos presos políticos. De sermos obrigados a engolir dispositivo exdrúxulo que convalidou e perdoou agentes do Estado praticantes de sequestro, tortura e asssassinato de opositores.

 

Por outro lado, sentíamos júbilo por ter contribuido para gerar a comoção popular, a mobilização e a defesa de direitos abolidos pelo regime militar. Por termos compelido o Governo do General Figueiredo a se pronunciar  e por fim à punição a alguns milhares de opositores do regime de exceção.

 

A situação com a qual nos defrontávamos era inimaginável há  ano atrás.  Portanto, sentíamos alegria por ter contribuido para libertar companheiros presos, para permitir a volta de banidos, asilados e exilados, bem como para reintegração de vários trabalhadores aos seus empregos de origem.

 

Nas forças armadas a resistência à reintegração de militares atingidos por medidas excepcionais persistiu.  A restauração de direitos ocorreu de forma precária. Não garantiu que militares punidos fossem reintegrados e recuperassem plenamente seus direitos..

 

Enfim, tinhamos clareza de que a anistia parcial, que impedia a punição de agentes do Estado praticantes de atos hediondos,  implicava na continuidade da luta iniciada anos atrás.

 

Contudo também percebiamos as enormes  dificuldades que teríamos pela frente. A sensibilidade e a receptividade demonstrada por amplas parcelas da população  anteriormente não seria a mesma.

 

Os acúmulos proporcionados pela pressão do movimento popular e da opinião pública revelaram-se insuficientes para romper o pacto de elites, o acordo velado que anistiava sequestradores, torturadores e assassinos de presos políticos. Para barrar a cumplicidade licenciosa que ainda mantinha na cadeia alguns opositores do regime.

 

A correlação de forças desfavorável não permitiu que o movimento popular, em ascensão,  assegurasse a plenitude dos direitos subtraidos pelo regime de exceção.

 

A lei da anistia parcial, aprovada pelo congresso, não era auto-executável.

 

Portanto, além das suas restrições, exigiu uma série de procedimentos juridicos e medidas políticas para coibir expedientes utilizados pelo sistema penitenciário, que postergaram a soltura de presos politicos que não tinham sido beneficiados pela anistia.

 

Mantidos em compasso de espera, sob apreensão, alguns foram libertados poucos dias após a promulgação da lei. Outros aguardaram recursos interpostos em instancias superiores do Poder Judiciário.

 

De forma ardilosa, progressivamente, o regime militar institucionalizava suas medidas de exceção, criava alternativas confiáveis que manteriam a transição sob controle, sem alterar substancialmente vários dispositivos utilizados para coibir a ação dos movimentos sociais emergentes.

 

O chamado pacto das elites celebrou o acordo discricionário que permitiu a conjugação de forças dispares, a associação de oligarquias, efetivada em nome da transição democrática.

 

Nas ruas o povo festejava, sem perceber que estava sendo sutilmente alijado dos centros de poder. Estava sendo mantido à margem de importantes decisões políticas pelos acordos celebrados por elites patrimonialistas com remanescentes da ditadura militar. Deste modo canhestro realizou-se o processo de redemocratização do país.

 

Por ironia do destino, a farsa se consumou com o inesperado falecimento de Tancredo Neves e posse do lider do partido da ditadura, José Sarney, como primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar.

 

A luta pela conquista da anistia plena e da reparação de direitos políticos não terminara.

 

Exigia a criação de novos instrumentos legais que recuperassem a memória e direitos elementares subtraidos pelo regime civico-militar.  Estas iniciativas tiveram prosseguimento e contribuiram para evidenciar práticas hediondas, o alcance das medidas arbitrárias e a existencia de desaparecidos durante a ditadura militar.

 

Entre estes dispositvos podemos destacar a Lei nº 9140, de 4 de dezembro de 1995, promulgada por Fernando Henrique Cardoso, que “reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979”.

 

A Lei nº 12527, de 18 de novembro de 2011, promulgada por Dilma Roussef, irá permitir o acesso a informações sigilosas.

 

No entanto, ainda há inúmeras barreiras e expedientes abusivos que impedem o acesso a documentos e dados referentes aos sequestros, torturas e mortes de presos políticos. Assim como, a cada dia, surgem fatos novos. Despontam indicios de tramas e assassinatos, desconhecidos até o presente. Alguns praticados por agentes da repressão no Brasil com apoio de forças externas por meio da Operação Condor, que tinha como objetivo a colaboração para eliminar opositores às ditaduras existentes no cone sul da América Latina. Os registros atuais revelam que poderiam ser assassinados onde estivessem.

 

As mortes de João Goulart, Juscelino Kubitscheck de Oliveira e de Carlos Lacerda, hoje, suscitam suspeitas e implicaram em novas investigações.

 

A constituição das Comissões da Verdade, em escala nacional, em diversos estados e em instituições públicas se conjuga e confere mais vigor à lei de acesso às informações.  A Comissão da Verdade, da Paraíba, criada em outubro de 2012, também reforçará esta iniciativa.

 

Desde a década de 1970, familiares de presos políticos coligem dados sobre mortos e desaparecidos durante o regime cívico-militar. Levantamento elaborado em 1984, contabilizou 339 nomes, dos quais 144 são press  políticos desaparecidos.[1]

 

Dados imprecisos mencionam a morte de 1200 trabalhadores rurais no Brasil durante este longo período.

 

O propósito das Comissões da Verdade não é mesquinho.

 

Não almeja promover o revanchismo e a retaliação, mas recuperar a História. Oferecer à memória dos mortos e desaparecidos, que lutaram contra o regime militar, bem como aos seus familiares subsídios para que façam jus à  reparação que lhes é devida pelo Estado brasileiro.

 

Pertencemos a uma geração que valorizou a força da argumentação. Que acreditou  piamente na capacidade do convencimento e no poder das palavras. Acreditou que as palavras seriam  instrumentos mais eficazes do que as armas.

 

Lamentavelmente, quando nos foi subtraído o direito de usar as palavras, alguns de nós tiveram que recorrer às armas e enveredar por enfrentamento extremamente adverso.

 

Muitos jovens, ainda que não convencidos plenamente de que este era o caminho acertado e despreparados para ações desta envergadura, lançaram-se neste embate desigual de forma abnegada e desprendida. Tragicamente, caíram na armadilha que o regime militar lhes armara.

Vivemos um novo tempo.

 

Ao promulgar estas duas leis, Dilma Rossef, foi enfática ao afirmar:

 

O Brasil se encontra consigo mesmo. Sem revanchismo, mas sem a cumplicidade do silêncio. (...) A lei do acesso à informação e a lei que institui a Comissão da Verdade se somam ao esforço e à dedicação de gerações de brasileiros e brasileiras que lutaram e lutarão para fazer do Brasil um país melhor, mais justo e menos desigual, brasileiros que morreram, que hoje homenageamos não com processo de vingança mas através do processo de construção da verdade e da memória.

 

Quando deflagramos a luta pela anistia, não tinhamos consciencia da importancia da defesa de  direitos elementares de todo ser humano. Inegavelmente nosso foco central concentrava-se em presos políticos.

 

Hoje, pode-se dizer que amadurecemos. Percebemos que direitos humanos são irrestritos e irredutiveis. Não podem ser reivindicados exclusivamente para uns e denegados para outros.

 

A luta pela anistia foi o germe de uma nova consciencia que brotava no campo da esquerda socialista. Uma consciencia que nos advertia que estes direitos são impostergáveis . Devem ser reivindicados em toda e qualquer circunstancia, mesmo numa sociedade iniqua que os proclama nominalmente e os repele em suas relações sociais.

 

Não é cabivel admitir que realização plena destes direitos seja adiiada. Só se torne visivel e  possível em outro sistema social mais justo e equanime. Não é cabivel  justificar inadmissíveis omissões frente a tantas violações que ocorrem no dia a dia. 

 

Este argumento favorece a falta de comprometimento com a defesa de direitos elementares de pessoas humildes. Representa indofismável renuncia ao acolhimento de demandas de homens, mulheres e crianças sujeitas cotidianamente a toda sorte de privações e violações na sociedade na qual vivemos.

 

Semana retrasada, frente às sucessivas denúncias sobre o desaparecimento do pedreiro Amarildo, atribuido à Policia Militar, o deputado estadual do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, advertiu que a necessária repercussão deste fato só se tornara possivel porque ocorrera numa comunidade favelizada da zona sul, em área próspera da cidade.

 

Enquanto isto, alertava, continuam desconhecidos e impunes os autores de 5600 assassinatos e desaparecimentos de moradores de favelas da baixada fluminense, também localizadas na mesma cidade. Estas mortes foram registradas apenas em um ano, em 2012.

 

Extrapolam a totalidade dos registros hediondos feitos durante longo período de atuação do aparelho repressivo do regime militar, entre 1964 e 1979.

 

Ainda hoje, existi um Ato Institucional nº 5 oficioso.  Não foi abolido no tratamento policial destinado às camadas populares.

 

A luta pela anistia ampliou a consciência política de seus militantes. Alçou sua visão para horizontes mais amplos que hoje impõem envolvimento crescente na defesa de direitos elementares e irredutiveis de todos os seres humanos, em todos quadrantes e em quaisquer circunstancias. 

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 



[1] Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964, São Paulo, IMESP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,2009; Ver também: Projeto Brasil: Nunca Mais (BNM), Um relato para a História, Pesquisa desenvolvida pela Arqudiocese de São Paulo, Petrópolis, Ed Vozes, 1985; MIRANDA, N e TIBURCIO, C Dos Filhos deste solo. Mortos e desaparecidos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado, São Paulo, Boitempo Editorial, 1999


Data: 02/09/2013