topo_cabecalho
Artigo - Roubaram nosso amigo Legal...

Wagner Braga Batista

 

 

Pelo telefone, de viva voz, ouvimos sua esposa dizer:

 

-Roubaram.

 

Segundo diziam, depois do bárbaro atropelamento que lhe subtraiu uma das pernas e quase suprimiu a vida de seu filho, agora nosso amigo Legal, fora roubado.

 

Quando chegamos à casa, a porta tosca fora arrombada, a desgastada tramela estava pensa, um dos vidros da janela quebrado,  sua cama revirada e as rusticas muletas de madeira espalhadas pelo chão.  

 

O vandalismo era evidente. Não respeitaram sequer a moradia simples deste pobre homem, mutilado pelo atropelamento.

 

O povo dos arredores do Monte Santo, em estado de comoção, manifestava viva indignação.  Pessoas idosas choravam, mulheres procuravam se confortar mutuamente e homens adultos estavam atônitos.

 

-Quem teria feito esta barbaridade?

 

Pobres crianças, agarradas à barra da saia das mães, aparentavam medo.  Outras, encostadas nas paredes retintas, misturavam-se às manchas e impressões digitais deixadas pelos larápios.

 

Quem chegava à casinha simples de nosso amigo Legal, pouco tinha a dizer.

 

- Como pode?

 

Chorando copiosamente, Elizabeth, a esposa de Legal, abraçada a uma vizinha, desesperada, não conseguia se conter:

 

-Como tem gente má neste mundo. Como foram capazes de fazer esta maldade com um homem  tão bondoso.

 

Confusa, não conseguia explicar o que houvera.

 

Seus filhos, Borrachinha e Viviana, estavam desconsolados. Interpelados por policiais que investigavam o roubo, afiançaram:

 

- Nosso pai é um homem pobre e  jamais fez mal a alguém.

 

Todos confirmaram este depoimento.  Estavam abismados. E se perguntavam:

 

- E Legal, onde estava naquele momento ?

 

Cada um que chegava dizia-se revoltado.

 

Como poderiam roubar este pobre homem, patrimonio do bairro do Monte Santo e de toda humanidade.

 

O único cidadão do mundo, detentor da comenda da Humildade, concedida pela ONU.

 

E a notícia se espalhou aqui e alhures.

 

Antes mesmo da chegada dos noticiosos locais, da imprensa escrita, do rádio e da TV, repórteres do New York Times e Washington Post, já se faziam presentes.  Declinaram de entrevista com Dilma Roussef para se deslocar para Campina Grande. Queriam conhecer as condições de vida do único portador da comenda de Patrimonio Mundial da Humildade.

 

As pautas dos principais jornais europeus e latinoamericanos também foram ajustadas. Franquias religiosas fecharam suas portas temporariamente. Revistas de costumes comprometeram-se a não publicar mentiras e banalidades. Programas televisivos de receitas culinárias, pela primeira vez, voltavam-se para os que passam fome e sofrem privações. As notícias cosméticas foram suspensas para acompanhar, em tempo real, o incompreensível roubo na casa de Legal, inconteste Patrimonio Mundial da Humildade.

 

Campina Grande, à vespera de seu sesquicentenário via-se submetida a esta vexatória ocorrencia policial.

 

O mundo em convulsão, subitamente, manteve-se inerme.

 

Urgia cessar hostilidades, a exploração humana, a devastação ambiental, o consumo desregrado, o desperdício de recursos naturais, a expropriação do patrimonio público e as continuas violações aos direitos humanos.

 

Todas as correntes democráticas e humanitárias voltaram sua atenção para Campina Grande. Tornava-se imperativa uma ação global que restaurasse direitos sociais ameaçados e apurasse o roubo praticado na rustica moradia do Monte Santo. Deste modo, mobilizaram todas as forças humanitárias, em Campina Grande e em todo o resto do mundo, solidárias com nosso amigo Legal.

 

Mesmo as forças desumanitárias não se mantiveram insensíveis.

 

As bolsas de valores de Tóquio, Londres, Nova Iorque, interromperam suas atividades e houve trégua nos conflitos do Oriente Médio.  Barack suspendeu a agressão à Siria e em contato direto com o Ministro de Justiça anunciou sua disposição de intervir no Monte Santo. Seus arroubos foram contidos e, uma vez admoestado, renunciou às  incursões belicistas e se dispôs a desmontar a rede de espionagem que bisbilhota nosso país.

 

Num gesto raro de pudor, ordenou:

 

- Cessem tudo. Queremos saber apenas quem roubou o borracheiro Legal.

 

Graças às apreensões frente ao roubo na casa de nosso amigo Legal, um nova deténte  desenhava-se no cenário político mundial.

 

Deste modo, pretensões policialescas norteamericanas reduzir-se-iam ao  espaço de sua nação.  Uma nova política de não ingerencia externa, de contenção dos complexos bélicos remanescentes, assim como da indústria da imbecilidade, da moda e de demais artefatos obsoletos seria implementada universalmente. Entraria em curso a democratização dos meios de comunicação e a defesa incondicional da inviolabilidade dos direitos humanos. Não mais se permitia a construção de escolas sem crianças e de crianças sem escola.  Tampouco seriam produzidos juizes, parlamentares e governadores corruptos ou descartáveis em todo sistema planetário.

 

 Associado a Puttin, Dilma Roussef e demais chefes de Estados europeus, Obama eliminou antigas resistencias e subscreveu um novo tratado socioambiental em homenagem ao nosso amigo morador do bairro do Monte Santos, em Campina Grande, PB.

 

Todos, sem exceção, mobilizavam-se para minorar apreensões causadas pelo roubo na casa de Legal e de seus familiares.

 

 Até mesmo médicos, costumeiramente ausentes do plantão, se resignaram e se dirigiram aos hospitais para atender aos seus pacientes.

 

Professores faltosos também compareceram à universidade para manifestar o reconhecimento da importancia do trabalho docente, da educação de qualidade, pública e gratuita e da função social das intituições públicas de ensino superior.

 

Redimiam-se de seus erros passados invocando o exemplo de vida deste borracheiro que jamais faltara ao trabalho.  Numa ciosa demonstração de autocrítica conclamaram seus alunos a prestar irrestrita solidariedade ao humilde borracheiro.

 

E a população de Campina Grande, aderiu a mais esta conclamação democrática. Mobilizou-se integralmente para descobrir quem roubou Legal.

 

Porém, antes de qualquer iniciativa mais abrangente se desencadeasse, seria necessário ouvir o próprio Legal.

 

Perguntaram a sua esposa e aos seus filhos:

 

- Onde estava Legal?

 

Seus familiares entreolharam-se surpresos e responderam atônitos:

 

- Vocês não sabem?

 

Só então, a população campinense e os noticiosos de todo o mundo perceberam a gravidade da ocorrencia.

 

Atordoada com o roubo, sua esposa não atinara para os fatos. Em estado de comoção, seu desespero se sobrepujou e consumiu as suas palavras.

 

Falara do roubo, mas não dissera o que fora roubado.

 

Em suspense, moradores do Bairro de Monte Santo dividiam suas apreensões com habitantes de Londres, Nova Iorque, Tóquio, Oriente Médio e toda a América Latina que assistiam, ao vivo, ao novo depoimento da esposa de nosso amigo Legal..

 

Só então se tornou pública dimensão daquele hediondo crime contra a humildade.

 

- O que teriam roubado de nosso amigo Legal?

 

Foi então que Elizabeth, sua esposa, atinou para o que dissera anteriormente e se corrigiu:

 

- Nada roubaram de Legal, roubaram o próprio Legal.

 

A ficha caiu.

 

A ocorrencia revestia-se de gravidade impar para a causa da humildade em todo o planeta. Não roubaram o Legal, haviam sequestrado nosso amigo Legal..

 

Certamente, os autores deste ignominioso crime, perceberam o valor desta reserva moral da Humanidade e quão valioso era este Patrimonio Mundial da Humildade.

 

Aos poucos, o nebuloso cenário se desanuviava.

 

Mobilizada, a população de Campina Grande, percorria todos os bairros e batia de porta em porta.

Unidos, torcedores rivais do Treze e do Campinense formavam a vanguarda deste amplo movimento solidário em prol da humildade, da generosidade e da fraternidade.

 

A mobilização coletiva teve êxito em poucas horas localizaram nosso amigo Legal numa granja, que em tempos idos, fora utilizada clandestinamente para tortura de presos políticos.  Aliviados, os populares perceberam que, além do sequestro, nenhum outro mal havia sido feito a nosso amigo Legal.

 

Souberam, então, o que ocorrerra.

 

Legal fora sequestrado por dois marqueteiros. Nada mais lhe roubaram, porque Legal não possuia bens materiais. Seus únicos bens são seus filhos, Viviana e Borrachinha. Porém o alvo dos marqueteiros não eram estes bens, pretendiam expropriar suas incalculáveis virtudes. 

 

Os sequestradores , marqueteiros com vasto e bem sucedido curriculo, vendiam-se à cada campanha eleitoral.

 

Em troca de grana alta de procedencia desconhecida, promoviam partidos políticos e candidatos de qualquer tipo. Não importava sua compleição, sua ideologia e sua integridade. Bastava apenas que tivessem os necessários recursos do caixa dois, oriundos de doações promíscuas, de contas fantasmas, do desvio do orçamento da união, dos estados e de municípios, da subtração de verbas de políticas públicas, da sonegação da saude, da educação, da moradia, do transporte entre outros direitos da população.

 

Pretendiam transformam trigo em joio. Supuseram-se capazes de inusitada conversão das virtudes de Legal. Pretendiam transformá-las em virtualidades publicitarias. Diga-se, em mentiras e falsificações.

Seriam empregadas em estratégias de marketing para enganar pobres e humildes homens. 

 

Os marqueteiros sequestradores imaginaram ser possivel manipular este Patrimonio Mundial da Humildade. Sugar suas virtudes, como se extrai água de poço.

 

Pretensiosos, queriam tranformar virtudes em fontes de licensiosidade, de desperdício, de consumo conspicuo e de padrões de vida suntuosos que agridem a consciencia humana.

Não se perguntaram:

 

Como a humildade e a simplicidade deste pobre homem poderia se prestar à promoção destes hábitos, destas pulsões e desta cultura tão nocivas à humanidade?

 

Porém, marqueteiros supõem que podem tudo. Uma vez que transformam vigaristas, larápios, corruptos, prevaricadores, vendedores da fé, inescrupulosos comerciantes de educação e de saude, entre outros seres despreziveis, em homens probos e honestos que se candidatam para representar e defender interesses públicos., imaginaram ser  capazes desta transloucada alquimia: transformar virtudes em ilusões.

 

Imaginaram que poderiam transformá-las, adequá-las a suas enganosas estratégias de marketing. Adulterá-las e ajustá-las aos atificios empregados para iludir milhões de pessoas a cada dia. Supuseram que poderiam quantificar e mercantilizar virtudes. Comercializá-las no atacado e no varejo. Disponibilizá-las em pactotes on line,  por preços de ocasião. Transformá-las em instrumentos da venda de produtos conspicuos, de artefatos banais, de bijouterias e apetrechos da moda, de selos de qualidade, de titulos de doutor honoris causa, de certficações verdes de empresas marrons e de utilidades inuteis,

 

As virtudes de nosso amigo Legal serviriam para irrigar e legitimar mentiras e falsificações perpetradas pelo marketing. Serviriam para credenciá-las como se verdades fossem e enganar consumidores inadvertidos. Serviriam para vender eletrodomésticos imprestáveis, bens descartáveis, produtos inúteis, automóveis que congestionam nossas vidas e nâo nos levam a lugar algum. Serviriam para estimular o desperdício, a degradação do meio ambiente, o consumismo devastador, a futilidade da ostentação, a vaidade narcisica, as frágeis identidades que se alimentam da segregação social e da inconsistente adesão a marcas e adereços publicitários. 

 

Por isto, os sequestradores não exigiram resgate.  Queriam se valer da imagem pública de honestidade, simpllicidade e humildade para viabilizar seu oposto, a soberba, a luxúria, o consumismo, o egocentrismo e a vaidade. Sequestraram Legal  para torná-lo refém de seus ardis publicitários. Para desvirtuar suas virtudes. Extrair delas potencialidades críticas,  fundamentos éticos, remissões socializadoras, contribuições para convivência humana mais fraterna, enfim valores inexistentes em estratégias de marketing.

 

Porém surgiu um problema ontológico insuperável.

 

Os marqueteiros precisavam criar um equivalente para fazer circular mentiras, falsificações e adulterações usuais em suas estratégias publicitárias, Precisavam cunhar uma nova moeda corrente que permitisse a compra, a venda e a contabilidade de suas mentiras. Que lhes permitisse expropriar e fazer circular virtudes sob a forma de falcatruas publicitárias.

 

Vejam só, meus confrades.

 

Queriam fazer o impossivel, como se fossem capazes de vitaminar virtudes com dinheiro de caixa dois.

 

Num ato criminoso queriam expandir generosidade por meio da implantação de silicone. Revitalizar a humildade com o uso de botox.

 

Os marqueteiros ao fazerem leitura superconceitual e pos-moderna das virtudes de Legal  esbarraram num impasse. Daí, entraram em conflito. Não conseguiam interpretá-las à luz dos novos paradigmas e sequer se entender a si mesmos.

 

Suas estratégias publicitárias foram por terra.  Houve atrito e o sequestro gorou.

 

Abandonaram Legal, como tinham abandonado, há muito tempo, seus próprios escrupulos.

 

Só, simples, humilde e sempre risonho, assim foi encontrado pela vanguarda Treze-Campinense.

 

Com sua modestia e simplicidade, Legal se concedeu o direito de dizer poucas palavras para os amigos que o resgatavam:

 

-Amigos, uma única coisa me incomodou. A pouca inteligencia dos marqueteiros. Sempre lhes dizia e não me davam ouvidos. Virtudes não podem ser aquilatadas pelo preço, mas pelo valor que têm em nossas vidas.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 05/09/2013