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Artigo - As crônicas e as cartas de amor

Wagner Braga Batista

 

 

As crônicas são inconfundíveis.

 

Tratam de circunstâncias e se tornam circunstanciais.  Gradativamente desprendem-se da lingua culta para se ater ao tom coloquial com que nos levam à realidade.  Falam do cotidiano, das coisas simples e triviais. Não aspiram à eloquência e à grandeza de textos que perduram. Desaparecem como os fatos efemeros que relatam.

 

Assim como as cartas de amor, referem-se às circunstancias que as motivam e que são sua fonte de vida.

 

As crônicas e as cartas de amor se confundem, posto que são circunstancialmente determinadas pelo que sentimos e vivenciamos. Remetem-nos a sentimentos elementares e intensos, que nos fazem felizes ou nos angustiam, bem como nos tornam elementos do tempo presente. Por isto, dizem-se intuitivas.  Com o transcorrer do tempo,  não se sabe o que serão.

 

Graças a esta particularidade ou a esta ambivalência, fixam-nos no momento presente, para que possamos vivenciá-lo como fato efêmero. Como tal, serão resguardados,  permanentemente. Como tempo que, inevitavelmente,  tornar-se-á pretérito.

 

As crônicas, apesar de efêmeras, são depositárias da memória. Ora nos convidam ao esquecimento, ora à lembrança, assim como o amor.

 

As crônicas são cartas de amor dedicadas às circunstancias que as tornam possíveis.

 

As crônicas, assim  como cartas de amor, são inconfidentes. Devassam-nos e nos expõem. São cartas escritas sem destinatário. Podem ser abertas e se tornar acessíveis a todos.  Todo tempo e em qualquer circunstância.

 

Como as cartas de amor falam de alegrias e dores confessas, são frutos de mãos involuntárias da realidade social e das circunstancias que nos ajudam a redigi-las.  São obras de fatos ocasionais que as proporcionam.

 

Os fatos são como mãos alheias que esculpem nossas motivações e inclinações. Inscrevem em  nossas vidas rudimentos de nossas vontades. Desenham sentimentos sobre  papéis e tantas outras superfícies que os reproduzem com maior ou menor fidelidade.

 

Arriscamo-nos a dizer que as crônicas e a realidade se misturam e nos confundem. Ambas nos mentem a mentira conscienciosa das palavras sinceras e da  fantasia.

 

Adepto dos papeis, das tintas e dos grafites não me deixei seduzir pelos apelos de computadores que não se prestam ao toque, à sensibilidade das texturas e ao cheiro que as palavras exalam.  Na verdade, tenho aversão a polímeros.

 

Prefiro coisa feitas da matéria viva, que também morrem, mas ainda trazem embutidos resquícios de vida.  São as coisas feitas desta matéria incongruente que nos colocam em contato com a  realidade e com a ficção feitas com vida degenerescente. A madeira do lápis, a celulose do papel, o aglutinante das tintas antigas serão sempre convidativos. Chamam-nos à vida que resta, à vida que fica e se materializa nas coisas que ainda possuem vida.

 

Enfim, além da aversão aos polímeros, tenho certa desconfiança de telefones celulares e de computadores.

 

Prefiro a pulsão dos significados imprecisos, do que tutoriais de informática que nos roubam o direito às impropriedades, nos impõem os vocábulos certos e não oferecem margem a riscos e desafios da linguagem.

 

Tutorias de informática não são propícios a sentimentos improváveis e ao amor acidental.  Só reconhecem a lógica formal, a razão instrumental e o maniqueísmo. Fora destes quadrantes não estão habilitados a perceber a complexidade da vida que nos cerca.

 

Jamais se prestarão a escrever cartas de amor. 

 

Definitivamente não acredito em amor que brota de teclados de computadores, nem em cartas de amor pré-formatadas.

 

Tampouco em crônicas sujeitas a corretores ortográficos que renegam nossas palavras canhestras e nos impõem seus significados.

 

Não creio em cartas de amor feitas de afogadilho, que nos traem ao oferecer nossas vicissitudes e suas fantasias ao ordenamento formal de monitores, previamente programados.

 

As crônicas e as cartas de amor, obrigatoriamente têm que ser escritas a mãos. Com a mão de quem as redige e com a mão da realidade que as plasma.

 

Legatárias de sentimentos, que se criam vagarosamente, obrigam-se a cultivar a leveza e a lentidão do que os proporciona.

 

Para guardar e reproduzir estes sentimentos, o tempo é indispensável. Posto que, exigem maturação, bem como todo tempo de redação que se faça necessário.  

 

Portanto,  cartas de amor não surgem da habilidade dos dedos e da artificialidade de  teclados.  Exigem muito mais. Requerem ausculta intima, bem como  a sintonia possível, que só a cuidadosa manipulação e a sutileza do toque das maõs nos proporcionam

 

É preciso que se diga:  a velocidade das informações  mutila cartas de amor e nos engana. Sugere que falamos de sentimentos céleres como a informática.

 

Os sentimentos não são céleres, são apenas efemeros. Duram intensamente,  enquanto duram vagarosamente. São passageiros, mas não são velozes.

 

 Diversamente do que propalam enganosas redes sociais, sentimentos também nos mentem, porém de forma sutil e escrupulosa. Dizem-se apressados, mas não transgridem a sincronia com a sensibilidade que lhes dá origem, com a linguagem que os traduz, com as mãos que lhes retratam e que lhes conferem visibilidade.

 

Por isto, crônicas e cartas de amor cometem infidelidades. Não se valem da licensiosidade para tornar públicas nossas confidencias. Fazem-no com o comedimento de quem anuncia um ato intimo como o primeiro beijo. Usam de providencial reserva e contingenciamento, para aguardar o momento adequado para anunciar o que já  é de domínio público.

 

Sim, as crônicas como as cartas de amor não são confidencias a dois.

 

Tornam-se publicas, antes que reservadamente sejam escritas. Antes que sejam discretamente lidas por todos  que não desconhecem seus relatos. Deste modo, são lidas com deferencia. Com a diligente atenção para conosco, como uma confirmação do que já se sabia.

 

Por isto, a leitura das crônicas, apesar de públicas, deve ser realizada de forma solitária, intima e silenciosamente, como se fossem cartas de amor. Como se nos fossem confidenciar sentimentos reconhecidos de antemão, mas guardados sob sigilo por um ato de condescendência e pudor.

 

Contudo ninguem deve ter vergonha de suas confidencias. Como não deve ser envegonhar da linguagem, das palavras e da interlocução com quem quer que seja. Éstas aptidões são próprias de todos que se dizem humanos.

 

Ninguém deve se envergonhar da sociabilidade que nos humaniza. Das manifestações espontâneas de apego à vida e às amizades. Das conversas desinteressadas, das opiniões acaloradas e dos diálogos que nos informam sobre a alteridade, o dissenso e as controvérsias inerentes à vida.

 

Companheiros, a vida é um permanente convite para o diálogo, é uma porta aberta para sentimentos. A todo momento convida, indistintamente a todos, para a conversa informal. Às crônicas que protagonizamos. Isto é próprio do Homem e da necessária convivência social.

 

Devemos nos envergonhar da vida privada, dos segredos, das falsidades, de tudo que subtraímos da convivência e da vida social. Do que não somos capazes de admitir aos amigos e a nós mesmos. Deveríamos ter vergonha de não tornar públicas nossas dissimulações e inverdades.

 

As crônicas nos remetem a nós mesmos. Induzem-nos à percepção de sentimentos que, muitas vezes, não somos capazes de revelar.. Sentimentos que se tornam inconfidências tardias sonegadas ao público e a nós mesmos.

 

Por favor, não entendam o vocábulo público como depreciativo. Não o interpretem como algo vulgar. Na sua verdadeira acepção, publico é o que se socializa, se divide e se reparte. O que se oferece à comunhão entre iguais e dessemelhantes.

 

Por isto, as crônicas e as cartas de amor tornam-se necessárias, advertem-nos para o tangível, para possibilidades da vida. Para realidades acessíveis e fantasias possíveis. Para direitos elementares, para a realização de expectativas simples e necessidades fundamentais, ainda sejam vivenciadas,  premidas por circunstancias adversas.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 06/09/2013