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Artigo - Viagens são suplícios desumanos

Wagner Braga Batista

 

 

Levado pelas navegações e pelas tensões migratórias, retornamos ao nosso ponto de partida, à temática das viagens.   

 

Durante algumas centenas de milhares de anos nosssos ancestrais viajaram. Premidos por condições adversas, obrigavam-se a migrar incessantemente para colher o que a terra ocasionalmente lhes oferecia. Tornamo-nos sedentários há muito pouco tempo, se considerarmos a longa extensão desta História. O dominio sobre forças naturais, até então desconhecidas, permitiu que nossos antepassados hominideos transpusessem algumas fronteiras da animalidade. Diga-se, desta animalidade que ainda nos brutaliza e nos desfigura nos dias atuais.

 

Pois bem, viagens não se converteram, apenas, em recursos da imaginação que enriqueceram almas dadivosas.

 

Viagens mirabolantes realizadas pelas almas narcisicas[1] têm seu contraponto nos fluxos migratórios que ainda compelem enormes contingentes de seres humanos em busca de condições minimas de vida. Estes homens, mulheres e crianças procuram recursos naturais minimos, cuja escassez em pleno século XXI denuncia o uso assimétrico, excludente e perverso de modernas tecnologias a nosso dispor.

 

São privados de agua e de alimentos que se tornam escassos em muitas regiões do planeta. Por conta Da apropriação e do uso restrito de recursos materiais e naturais, ondas migratórias reproduzem processos primitivos. Colocam em risco a própria vida para vender o único bem e aptidão que lhe resta, a capacidade de trabalho.

 

Viajar não é só uma exigência da alma, do atilamento do espírito e da curiosidade humana, trata-se também de uma imposição de condições de vida adversas, que obrigam homens aos riscos das travessias. À tentativa de superação de limites geográficos, economicos e sociais, algumas vezes intransponíves.

 

Sob este viés, viagens não são necessariamente aventuras da alma ou da imaginação, tornam-se verdadeiros suplicios infringidos aos deserdados, aos excluidos e marginalizados.

 

Esta trajetória tem sido documentada por meio de diferentes linguagens. Temos os retirantes, encarnados nas pinturas de Candido Portinari, na literatura de Graciliano Ramos e de vários cineastas existentes no mundo. A fotografia também nos brindou com imagens contundentes destes dolorosos processos migratórios, entre elas as magistrais revelações de Sebastião Salgado que informam o drama de crianças e de refugiados de 41 paises.

 

No mundo presume-se que há cerca de 175 milhões de migrantes. A depender das fontes estes números são discrepantes. O que têm em comum é a ordem de grandeza.

 

Há peregrinos que se deslocam para santuários religiosos como atos de fé. Exilados que se refugiam para se resguardar de perseguições e punições. Há aqueles que procuram asilo por conta de ameaças a sua integridade fisica e política. Outros são banidos e impedidos de retornar a sua terra natal. Há retirantes que se veem na contingencia de partir de seu território pela falta absoluta de condições de vida e de trabalho.

 

Na fronteira entre a intolerância política, religiosa, étnica e socioeconomica e o acolhimento, desenham-se as manifestações controversas que tendem a ameaçar ou fortalecer valores humanos. Em qualquer destas injunções a solidariedade humana está sempre presente.

 

O Brasil é um estuário de migrações.

 

Hoje, algumas das maiores cidades da região sudeste do país, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro, são habitadas por população predominantemente nordestina.  Grande parte desta gente não migrou por opção, mas por imposições socioeconomicas.  

 

Estas populações procedentes das regiões norte e nordeste constituiram a força de trabalho disponível na segunda metade do século XX. No inicio deste século, ideologias racialistas discriminavam a mão de obra nativa e escrava. Sem nenhum escrúpulo, estimularam a  exportaçãode trabalhadores europeus para branquear a força de trabalho deste país extrordinariamente miscigenado.

 

Ao longo da década de 1960, estima-se que o exodo rural movimentou 12 milhões de trabalhadores. Na década seguinte mobilizou mais de 15 milhões de trabalhadores também oriundos do campo, principalmente do nordeste do Brasil.

 

Estes contingentes são maiores do que a população de alguns países latinoamericanos.

A maior parte da população nordestina, residente e sujeita a discriminações em algumas cidades do sudeste, foi forçada a sair de sua terra natal à busca de trabalho.

 

Sem alternativas, submeteu-se a condições de vida aviltantes, a atividades degradantes e mal remuneradas para subsistir em meio inóspito. Este penoso esforço sobre-humano e mal recompensado,  ainda se amplia por conta de sequelas decorrentes da decomposição da vida familiar. Da rutura forçada que impede que laços familiraes sejam preservados por conta da necessidade de sobrevivencia em condições adversas.

 

Em vários municípios nordestinos surgiram  viúvas da seca. Mulheres que se tornaram arrimos de familia porque seus companheiros se viram forçados pela seca a migrar para o sul do pais  à busca de trabalho.

 

Em 1965, Geraldo Sarno, cineasta engajado, pretendia examinar a conduta da classe trabalhadora de São Paulo frente ao golpe militar. Suas sondagens iniciais causaram-lhe estranhezas, defrontava-se com cenário diverso do imaginara, porém igualmente instigante. Ao iniciar a pesquisa para a arealização do documentário “Viramundo”, auxiliado por um dos grandes sociológos brasileiros, Otavio Ianni, constatou que os trabalhadores urbanos eram recém egressos do campo, nordestinos em sua ampla maioria, pouco identificados ideologicamente e ainda não familiarizados com a luta em defesa de direitos subtraídos pelo golpe militar.

 

Esta percepção enriquecedora do universo no qual se locomovem migrantes de diferentes origens, credos e convicções nos leva a enfatizar o que estes seres humanos têm em comum.

 

São homens, mulheres e crianças que, por força de circunstancias adversas, estão sujeitos a privação de direitos elementares. Suas movimentações imprevidentes e compulsórias surgem aos nossos olhos como advertências criticas. Cobram-nos a efetivação de irredutíveis direitos humanos em qualquer quadrante do nosso planeta.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG



[1] Viajar é uma exigência da alma , EM DIA Periódico eletrônico da UFCG  URL::http://www.ufcg.edu.br/prt_ufcg/assessoria_imprensa/mostra_noticia.php?codigo=15407

Em 16 de setembro de 2013


Data: 21/09/2013