Artigo - As flores da sapucaia Wagner Braga Batista Ao chegarmos, no início da manhã, ao parque municipal Américo Renee Giannetti, eu e tantos moradores de rua, estávamos sendo recepcionados. A que se devia esta recepção? Não sabíamos. Em geral, indigentes não são bem recebidos. São enxovalhados. Enxotados da cidade, das ruas e da própria condição humana.. Como não dispõem de cartão de crédito, nem são consumidores, estão inabilitados para receber o passaporte para a cidadania, que lhes asseguraria alguns direitos elementares, entre os quais, ser chamados de gente. Recentemente, associação de comerciantes e clubes de serviço locais, com invariável cobertura da imprensa, empenharam-se em afastar estes homens indesejáveis da frente de shoppings, das portas de suas lojas, bem como do resguardado olhar languido de vetustas senhoras e de belas donzelas que desfilam pela Savassi. Em Belo Horizonte, estima-se que há mais de dois moradores de rua. Este contingente tende a crescer por conta de deficientes políticas públicas que oscilam entre o tratamento assistencialista e policialesco. Não diminui induzido pela crescente migração de áreas periféricas para a capital e do trabalho para o crônico desemprego. Sujeitos à agressão de skinheads, à violência dos abrigos, ao furto sistemático de seus poucos pertences, aos achaques e humilhações sistemáticas são os migrantes entre territórios inóspitos da loucura, da perversão e do abandono. A indigência a que estão submetidos estes homens converte-se num convite para irremediável prática de delitos, entre os quais o consumo de drogas. O álcool é o primeiro passo numa agônica escalada rumo ao fatídico crack. Pois bem, para nosso espanto, hoje estávamos sendo homenageados. Ao chegarmos ao parque municipal descerrara-se um cenário incomum para todos que são obrigados a andar de cabeça baixa. Para os que são compelidos a só enxergar o chão, havia um tapete branco estendido, que enchia de luz nossos olhos e nos fazia erguer os olhos. Deste modo, o espanto e a curiosidade faziam-nos olhar para alto. Para onde moram horizontes que todos os homens deveriam visualizar. Espantados, os indigentes reparavam a existência de bandos de pássaros sobrevoando arranha-céus e de extraordinário azul que abrigava esta cidade. Por meio deste olhar consentido, observavam o verde de enormes árvores contrastando com a penúria da massa cinzenta dos edifícios. Havia árvores esvoaçantes, que acompanhavam o voo dos pássaros. Árvores migrantes, como homens que lançavam sementes ao vento e coloridas como frondosos ipês azuis, rosas, brancos e amarelos. Como bougainvilles que se esparramavam dormentes sobre quiosques e concediam pétalas de todas as cores ao nosso imaginário. Mas o espanto dos indigentes não aplacara. Olhos arregalados traíam a lassidão do corpo, flagelado pelo cansaço e pelo frio da noite. Não acreditavam no que viam. A primavera chegara pela primeira vez para estes pobres homens apartados pela sociedade em que vivem. Surpresos e encantados queriam ceder o corpo para aquele extenso lençol branco que os acolhia pela primeira vez. Deste modo, poderiam se deitar, como todas as noites, habitualmente, deitam-se homens, mulheres e crianças. As generosas sapucaias despejavam flores no ar. Derramavam branco sobre o solo do parque acolhedor para que estes sofridos homens pudessem deitar. As sapucaias saudavam sua chegada ao calor do dia, ao abrigo do espaço público acolhedor e lhes estendiam o branco lençol de suas flores, para que, ao menos neste dia, pudessem mitigar suas dores e seu cansaço
Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG Data: 18/10/2013 |