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ARTIGO - Os atletas giletes

Wagner Braga Batista*

 

A mitologia sugere que King Camp Gillete ( 1855- 1932) alcançara o Olimpo por acolher a sugestão de projetar um bem descartável. 

 

Gillte projetou e produziu uma nova lâmina e um aparelho de barbear. Originalmente, nenhum dos dois era descartável.  Sofriam desgastes com o uso, porém não eram descartados como são  atualmente. A lâmina de barbear, assim a sua congênere, a navalha, eram habitualmente  afiadas em tiras de couro.

 

Como todos os mitos, o mito da descartabilidade não se sustenta.

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  A descartabilidade tornou-se uma estratégia de produção e de consumo. Em que pese o discurso em prol da sustentabilidade transformou-se num vetor da sua dinâmica na economia de maercado. Ou seja, uma força emuladora da economia do desperdício.

 

Viabiliza-se em nome do barateamento de custos operacionais e de estratégias de mercantilização de produtos.  Não só como uma lógica de gerenciamento da produção e de consumo, mas também como uma ideologia que atribui virtualidades à obsolescencia planejada, à redução da vida util e à descartabilidade de produtos industrializados.

 

A descartabilidade se afirma por meio de argumentos falsos e  inconsistentes. Infunde a ideía de beneficios ao consumidor para operar sérios danos à sociedade, ao meio ambiente e à vida planetária.

 

Associada a paradigma inovador incremental, cultuada pela destruição criativa schumpeteriana, integra o receituário das técnicas devastadoras e excludentes que fascinam  de designers. Estimulam o imaginário destes projetistas com a prodigalidade de artificios enganosos.

 

Gillete desenvolveu um projeto inédito. Conjugou a pericia de projetar o formato de uma lâmina beneficiado pela flexibilidade de liga metálica. A argucia e o conhecimento técnico se consolidaram num dispositivo reconhecido como exemplo da proficiencia do desenho industrial, hoje banalizado e desfigurado sob o codinome de design.

 

Porquanto o tal design se dê luxo de diminuir e desfalcar nosso idoma, o notável inventor desta lâmina  introduziu no léxico não apenas o verbo escanhoar, mas também a polissêmica palavra gilete. Contribuiu para aliviar o temor e o suplício de homens e mulheres diante do corte das navalhas, bem como acrescentou novas significações ao nosso vernáculo.

 

Como assinalamos, as lâminas de barbear, vulgarizadas como giletes, originalmente não eram descartáveis e possuiam o fio em apenas uma das extremidades. O uso contínuo induziu sucessivas adaptações. Suas particularidades originais modificaram-se. Após alguns experimentos, suas extremidades foram afiadas, permitindo o corte pelos dois  lados.

 

Esta característica da gilete foi apropriada pelo fino humor popular para ironizar condutas ambivalentes. Gilete tornou-se sinônimo de ambiguo. Um vocábulo depreciativo, utilizado para discriminar bissexuais, bem como para qualificar graduados na arte da ambiguidade. Para instrumentalizar o fio da língua para flagelar profissionais da deslealdade.

 

Deste modo, a autêntica gilete foi duplamente desqualificada, pela descartabildade e pela irreverência da linguagem chula.

 

Hoje, defrontamo-nos com uma nova apropriação deste vocábulo. Temos uma nova safra de giletes no mercado. Seus perfis  exuberantes despontam no basquete e no futebol. São os afiados treinadores e atletas giletes, que cortam pelos dois lados.

 

O devastador capitalismo globalizado apagou fronteiras dos vizinhos, porém fortificou os muros de Wall Street. Não reconhece fronteiras de outras países, porém protege com unhas e dentes seus domínios privados. Proclama a diversidade, mas sufoca etnias. Exlata a mobilidade, mas constrange, avilta e confina o trabalho em cadeias da moderna escravidão.

Podemos dizer que convivemos com o capitalismo gilete.

 

Este modus vivendi grotesto no qual podemos reivindicar nacionalidades abolidas pela generosidade da globalização. No entanto somos reconhecido pelo DNA dos digitos de inquestionáveis documenos de identidade e de passaportes que nos retiram ou nos condenam à vida no submundo.

 

Nossas multiplas identidades no facebook não se reproduzem em prontuários policiais.  No pega para capar da repressão grosseira so usufruimos da personalidade de nossas exclusivíssimas digitais. temos única e exclusivamente nos conferem a prerrogativa de falsificação de digitais se reproduzem nas digitais  levam as Somos ainda Podemos postular o direito lito.

 

As multiplas nacionalidades só são alcançadas pelos que conseguem penetrar nas vitrines dos shoppings que automaticamente os conduz às redomas do primeiro mundo e os resguarda dos horrores das periferias do capitalismo civilizado..

 

Estes podem migrar de nacionalidades e se tornar, até, cidadãos do green card. Os demais sequer não são reconhecidos como cidadãos nos paises em que nasceram. Sequer habitam direitos elementares na terra em que deitaram raízes.

 

O capitalismo gilete globalizou a ambivalencia.  Não como pessoa fisica, mas como uma marca da conveniencia e da deslealdade.  

 

Graças a esta performance temos a disseminação mundial do corte das giletes.

 

Sem medo de errar, os atletas giletes renegam a visão idilica do futebol, como também desprezam a tão desprezada  nacionalidade, postulada chauvinisticamente por técnicos giletes,  que só reconhecem a linguagem dos milhões, como nos confidencia, ao pé do ouvido, Luis Felipe Scolari:

 

- O atleta gilete está dando as costas para o sonho de milhões

 

O técnico da seleção brasileira, com a habitual fineza de papel de enrolar prego, manifesta sua indignação com a postura de atleta gilete, que trocou a hospedagem no cabide de pinduricalhos da seleção da CBF pela cidadania espanhola. Afinal quem gosta de paella valenciana não se sente obrigado a trocá-la pela pizza requentada do futebol brasileiro.  

 

Conscienciosamente, respeitemos a diversidade de escolhas.

 

O que nos causa estranheza é a atual indignação e os arroubos do ex-técnico da seleção portuguesa que disputou a Copa do Mundo de 2006. Diga-se,  jogando contra o time da CBF.

 

Incomodado, José Maria Marin, sucessor de Ricardo Vil Teixeira, na CBF, que se concedeu um modesto salário de 160 mil reais, acionou o departamento jurídico da entidade para se inteirar  sobre direitos trabalhistas das giletes.

 

A ambiguidade liberal instituiu a cultura ou a moda da gilete. Consagrou a ética da deslealdade, oferecendo generosa margem à licenciosidade e à permanente exigência do corte.

 

Neste contexto de ambiguidades e ambivalências,  expressiva parte da população do mundo e do Brasil  padece uma única certeza, a contínua dor e a sangria dos cortes.

 

Pelos dois lados das giletes. ..

 

* Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 31/10/2013