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Artigo - Desenhar é seguir o risco: o VIII Festival Internacional de Quadrinhos

Wagner Braga Batista

 

 

A mitologia nos informa que Aristóteles se insurgira contra a escrita porque suprimiria o exercicio meneumônico. Alegava que os homens perderiam a memória por conta da leitura.

 

Hoje em dia, diz-se que a internet nos redime de nossos desconfortos e culpas.  Exime-nos de pensar.

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Estes mitos também incidiram sobre as minúsculas histórinhas em quadrinhos. Por longos anos foram desqualificadas e denegridas como passaportes para a indolência, os maus costumes e os vícios solitários.

 

Na década de 1950, quando a rebeldia juvenil escancarava a desfaçatez do american way life, as histórias em quadrinhos entraram no rol das proscrições de puritanos.

 

É claro, o comunismo ateu encabeçou a bizarra lista de entidades satânicas. Nela, estavam inscritos o cinema, a televisão, o chiclete, os discos voadores, o rock in roll e as inestimáveis histórinhas em quadrinhos.

 

Neste contexto, mais fiéis do que o papa, educadores insurgiram-se.

 

Responsabilizaram tiras, quadriculas, traços, grafismos, desenhos e balões de leitura pelo emburrecimento da esbelta e livre juventude norteamericana.

 

Segundo apóstolos do macartismo, os lideres deste movimento de bestificação de crianças e adolescentes eram os balões, onde diálogos simplificados inibiam a aptidão para a  leitura.

 

O tedioso colóquio se reproduziu em escala mundial. Na versão tupiquim, contou com a participação de notável desenhista, que bebera na fonte de Tico-Tico, revista que fascinou a criançada na década de 1940. Um mineiro que recriaria fábulas nativas para dar voz ao séquito de bichos que animariam as estripulias do Saci Pererê.

 

Ziraldo, fascinara tantas crianças que se tornara um exemplo vivo  da importância dos quadrinhos, do interesse que despertavam pela alfabetização e pela leitura. Com toda autoridade rebateu o reducionismo destes pseudo-educadores.

 

A História das histórias em quadrinhos é tão fantasiosa quanto elas mesmas. Perde-se  no tempo.

 

Rudimentos das estórias em quadrinhos são encontrados em pictogramas, em colunas romanas, em incunábulos e em litografias do século XIX, amadureceram com as novas técnicas de impressão. As impressoras rotativas aprimoraram, aumentaram e aceleraram a tiragem dos jornais. Propiciaram a inserção de imagens com maior rapidez e intensidade nas páginas dos jornais. Entre elas, as nossas estorinhas.

 

Na virada do século XX, as histórias em quadrinhos ganharam notoriedade nas páginas dos diários. Não só nos EUA, como também em outros países industrializados.

 

Neste contexto, Capitão Nemo, Yelow Kid, Sobrinhos do Capitão, Gato Felix,  Betty Boop, entram em cena para desfiar suas aventuras e peripécias.

 

Na década de 1930, o colapso da bolsa valores norte-americana transformou  o cinema e as estorinhas em quadrinho em válvula de escape da crise economia. Estes veiculos de entretenimento contribuiram para animar o imaginário da população. Com sua função ambivalente, anestésica e revitalizadora, tornaram-se um dos antidotos para a descrença e a desesperança. Graças à inventiva de exímios desenhistas e roteiristas, o drama diário podia ser sublimado. Homens impotentes sentiam-se dotados de poderes de super herois, personagens capacitados para superar todas as adversidades da crise social avassaladora.

 

Neste contexto, os jornais não vendiam tragédias diárias, vendiam esperanças.  Nutriam o enternecimento, o sono e a possibilidade de sonhar. Os sonhos tornram-se dádivas da indústria cinematográfica alienadora e das minusculas histórias em quadrinhos.

 

Os quadrinhos, assim como o cinema, fascinavam e entretinham homens e mulheres desempregados, crianças famintas, gente desiludida. Dividiram os louros de fabricantes de ilusões animadoras. ( Ihlya Eremberg)

 

Dito isto, sentimo-os à vontade para dar as mãos a Yellow Kid, compartilhar as travessuras dos sobrinhos do capitão,  não conter a sensibilidade e o riso para poder  privar das alegorias, das metalinguagens e das onomatopéias. Para entrar neste universo ilusório, sem temer as suas fantasias.

 

Deste modo de braços dados com crianças e adolescentes de escolas públicas transitamos pelo cenário secular da restaurada Serraria Souza Pinto, na qual está instalado o VIII Festival Internacional de Quadrinhos, em Belo Horizonte.

 

Painéis, livrarias, exposições temáticas, mostruários de tratamentos gráficos, murais com trabalhos de vários jovens desenhistas, muitos dos quais exercendo atividades em prestigiadas editoras estrangeiras, não deixam margem a dúvida, neste terreno, no qual engatinhamos alguns dias, novas gerações se afirmaram com brilhantismo.

 

Colocam-se lado a lado, com pioneiros e seus precursores desta jornada. Da abertura desta senda maravilhosa que se alarga a cada dia.

 

O Festival apresenta-nos uma visão panorâmica desta trajetória, destaca alguns de seus desbravadores, entre eles, Laerte.

 

A capacidade de síntese e as sutilezas do exótico Laerte permitem-nos usar poucas palavras para descrever uma de suas charges : um hesitante crente, frente às portas de  franquia religiosa, não sabe se paga muita, meia ou pouca entrada para comprar sua fé.  Encontramo-nos também com as argutas charges de Angelli, extraídas da Folha de São Paulo, condensadas no volumoso livro intitulado “O lixo da História”.

 

Neste ambiente, sentimos saudade do sincrético e sarcástico mineiro, Henrique de Souza Filho, o fabuloso Henfil, que nos deixou prematuramente.

 

Nos balcões de livros, despontam novas editoras especializadas, que recuperam a estratégia da extinta Editora Brasil America Ltda-EBAL, qual seja,  popularizar clássicos da literatura brasileira por meio dos quadrinhos. Ainda que sejam linguagens e narrativas diferentes, a literatura e as artes gráficas alimentam-se e se  enriquecem mutuamente.  Entre estas  obras, “Clara do Anjos”, de Lima Barreto, encontra suporte nos refinados desenhos de Marcelo Lelis.

 

Firma-se um sólido movimento editorial por meio do qual estilos, ilustrações, caricaturas, charges, cartuns e histórias em quadrinhos convertem-se em elementos centrais da produção gráfica. Deste modo, somos agraciados com edições cuidadosas, diagramações originalíssimas e padrões gráficos inusitados numa extensa lista de títulos capaz de saciar a voracidade dos iniciados nestas artes.

 

Deparamo-nos com relíquias, entre as quais, a primeira página do The New York Herald, de 25 de março de 1905, ocupada com as oniricas aventuras de Litle Nemo, bem como com o traço sinuoso e erótico de Guido Crepax oferecendo sua personagem, Valentina, ao banquete de nossos olhos

 

Não fosse suficiente esta panoramica dos quadrinhos, ainda somos agraciados com o entusiasmo de seus autores. Em oficinas temáticas, num relevante trabalho pedagógico,  estes diligentes desenhistas empenham-se em estimular estudantes do ensino médio e fundamental a seguir o risco.

 

Sim, isto mesmo, a vivenciar esta deliciosa aventura comum, que nos incita a desenhar, a seguir prazer do risco.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 13/11/2013