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Artigo - O lixo extraído da História

Wagner Braga Batista

 

Como no conto, a soberba do rei foi desvelada. O menino conseguia enxergar o que todos não queriam ver. O rei estava nu.

 

Este é o ofício da critica: desvelar processos sociais e sua História..

 

Esta semana tivemos oportunidade de ver centenas de reis desnudos ao mergulhar em picaresca aventura histórica. Estimulado pelas histórias em quadrinhos, deparamo-nos com dois livros que recuperam tragicômicas passagens de nossa História.

 

Depois de inúmeras narrativas, que transitam da oralidade à literatura, a História invade novos leitos. Recorre a criativas linguagens para nosso deleite. Deste modo, em balcões de livros abrem-se espaço para novos  cronistas históricos.

 

Com suas versões alegóricas, humoristas de diferentes extrações, inovam a História. Utilizam-se da ironia para decantar e extrair deste profundo poço os refugos da História. Sem pretensões científicas e acadêmicas, estes cronistas do cotidiano,  oferecem-nos antídotos contra as muitas Histórias que nos são contadas, que nos são injetadas, em doses cavalares, subliminarmente. Contrarrestam a dissuasão com seu humor cáustico e suas distoantes versões históricas..

 

Por conta desta performance, possivelmente sejam taxados como incondicionais apóstatas. Sejam sentenciados pelas arrasadoras e definitivas palavras  de Trotsky. Colocados no mesmo patamar que os transfugas, os mencheviques, os social- democratas e os heróis do mensalão.

 

Indigentes da oficialidade histórica, vêem-se no banco de réus. Neste papel inglório colocam-se a mercê dos sócio-proprietários da razão e dos tutores da fé. Obrigam-se a pleitear penas alternativas aos donos dos cartórios do STF.  Humildemente, ao invés de morejar no lixo da História, propõem-se a limpar a História. Dispõem-se a extrair deste fecundo lixo, onde pululam autobiografias e germes assepticos, o humor critico que concede sentido à História.

 

Pois bem, encontramo-nos com dois destes novos cronistas históricos, renegados por Trotsky, trocando figurinhas. 

 

Brindados por dois livros, um não muito recente, “1984-2004: 20 anos de Chico Caruso no Globo”, outro, com título mais sugestivo, parafraseado neste artigo, descemos ao lixo da História:

 

Graças a eles, resgatamos passagens de nossa História..

 

Recordamo-nos que uma das primeiras medidas da ditadura militar, em 1964, foi instaurar Inquérito Policial Militar contra Nelson Werneck Sodré. Seu crime, praticado com outros pesquisadores, foi rever a História. Mexer na casa de maribombos da Guerra do Paraguai e ferir os brios dos herdeiros políticos do controverso patrono do Exército Brasileiro. Assim a Nova História foi suprimida pela Velha História.

 

Treze anos depois, outro escritor,Lourenço Diaferia, foi processado pelo célebre General Silvio Frota pelo mesmo crime: ofender as Forças Armadas.

 

Esta ditadura tornara-se mais prudente do que a adotada no Estado Novo. A mais antiga, porém não mais retrógrada,reservara dois lugares para a História. O pedestal, quando glorificava Getúlio,  e as estantes da censura, quando questionava suas arbitrariedades.

 

O golpe militar de 1964 definiu limites para a História. Ungiu a metodologia, as diretrizes e os parametros da excelência histórica. Seu eixo e objetivo, a descrição dos fatos históricos filtrados pela censura. Para alvejar o Milagre Brasileiro, a concentração econômica,  as disparidades sociais, a falta de liberdades democráticas, a corrupção, a tortura e assassinato de presos politicos foram varridos da História.

 

A Nova República, que, em tese, abolira a censura, tirou de cena o filme “Je vous salue, Marie”, por determinação dos príncipes da Igreja.

 

O Principe do Sociólogos também tratou de contribuir com esta temática ao enquadrar analistas de suas façanhas como neobobos.

 

Humoristas, os menos proeminentes, é claro, conseguiram por vezes driblar a soberba e o olhar sequioso, porém tacanho, de censores, que modelam esta nossa História.

 

Deste modo, favoreceram a compreensão de  vicissitudes de complexas conjunturas. Somaram-se aos que, a duras penas, tentaram superar suas injunções  históricas.

 

Um lugar comum sugere que a caneta tenha mais força do que a espada, arriscamo-nos a dizer que, muitas vezes, a ironia torna-se mais contundente do que o cinismo dos que oficializam a História.

 

Estes livros condensam charges de dois sarcásticos desenhistas: Chico Caruso e Angeli. Recuperam delicados períodos da História. Porquanto as charges de Caruso, se fixem na política interna brasileira na transição da Nova República à restauração liberal, os cartuns de Angeli,( ”O lixo da História”, Companhia de Letras, 2013) compilados da Folha de São Paulo, remetem-nos à virada do século XX, ao turbulento cenário internacional, desenhado pela ascensão de Bush. Desmontam engrenagens e arsenais, que transformaram agências financeiras multilaterais e patrulhas norteamericanas em guardiãs da nova ordem mundial.

 

Nos cenários alegóricos das charges, ao invés de serem elevados aos píncaros  de biografias forjadas, assistimos grotestos personagens, Figueiredo, Maluf, Sarney, Abi Ackel, Collor, PC Farias, Renan Calheiros, Toninho Malvadeza, Jader Barbalho, Bush e tantos outros, imergindo no lamaçal do qual brotaram.

 

Estes chargistas homenageiam o prolífico lixo, que nos proporcionou abundantes ilustrações do que não deveria ser nossa História.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 18/11/2013