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Artigo - Selfie

Wagner Braga Batista

 

 

Quando crianças adquirimos a aptidâo e o displicente hábito de assoviar.

 

Assoviar ajudava-nos a nos distrair e a enganar o tempo.  Não era um ato voluntário, uma capacitação da algum ofício, uma preparação para produtivismo tardio ou um habitus reativo, ideológico, avesso à soberba acadêmica ou anti-bourdiesiano.

 

O assovio era uma atitude despretenciosa, vista por uns como desatino, por outros como uma maneira prévia de ludibriar o destino.

 

Descomprometidos com  vida, como passarinhos vadios, entretinhamo-nos com assovios.

 

Eventualmente, tornavam-se portais de inconfessável cumplicidade, celebrada pela linguagem indecifrável dos silvos.

 

Os assovios só eram reconhecidos pelos iniciados pelo vento, que disseminou os segredos universais dos silvos.

 

Os ventos, sem pleitear vantagens ou direitos, permitiram que os homens dotasem os sons de significados..

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Tornei-me fascinado pelos silvos. Daí, a confusão quando pela primeira vez ouvi a palavra selfie.

 

Imaginei que fosse uma irmandade dos silvos e dos significados.

 

De metafóricos  pássaros que nos ensinaram os silvos e ficaram a nos dever seus significados. Uma nova confraria de homens, que, irmanados, dotaram silvos de significados e significação à  linguagem que transformou o nada em significações que também nos humanizaram.

 

Os silvos me ensinaram que fora da relação social, na qual o homem adquire significado, não há silvo ou imagem que nos fale.

 

Aí, os silfies se opõem à realidade dos significados.

 

Quando ouvimos pela primeira vez a palavra selfie, sentimo-nos identicados com esta presumivel tribo que silva. Mas os silfies não silvam, tampouco falam.

 

Não pertencem a um grupo de assoviadores natos, a alguma estirpe falante, a etnia subsaariana desconhecida ou nacionalidade intergaláxica. São globais por natureza. Sem raízes em lugar algum, salvo em si mesmos.

 

Graças aos hábitos de consumo foram premiados com o bônus do egocentrismo. Têm o direito de se olhar no espelho, mascar chiclete com sabor de depressão e abrir o fecho eclair do desespero narcisico.

 

Os selfies não são silvos que nos chamam. Não pertencem a alguma seita do ecumenismo silvico que sensibilize e congregue que assova e fala.

 

Os assovios, solenes e convidativos, não fazem parte de suas liturgias. Não hes levam a perceber os povos que habitam esta nação chamada rua, o convivio humano ou tudo que não mora em suas máquinas de desespero, que fotografam a si mesmas.

 

Não conseguem ouvir esta gente que, em qualquer lugar do mundo, fala linguagem  universal que nos consente o direito à humanidade. Que não precisa pagar imposto para head phones, pedágio para celulares, nem licença para assoviar nas ruas, nas praças, nos pontos de ônibus e em espaços públicos.

 

Os selfies desconhecem os trilos que rompem redomas do individualismo. Desconhecem os silvos que partem muralhas de vidro e as vitrines que os separam do mundo  dos assovios.

 

Selfie não rima com silva. Selfie,  tampouco, silva. Sequer terão o prazer de chamar um cão por meio de um assovio.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 02/12/2013