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Artigo - Seis filhos

Wagner Braga Batista

 

 

Sentada ao meu lado, uma radiante vontade de vislumbrar o mundo.

 

A somítica distribuição de renda, os degraus que levam aos céus do consumo e o milagre das passagens aéreas descortinaram um futuro fugaz. Ilusório, é claro. Mas já se plasmara como um futuro, tangível para quem nunca teve oportunidade de ter futuro.

 

Ciosa da idade avançada, apesar do pouco convivio, confidenciou-me apressada. A vida não lhe permitira, teve que cuidar dos pais, dos filhos e, agora, do marido doente. Desde os 17 anos havia se prometido conhecer o Rio de Janeiro. No ocaso da existência, seu sonho realizar-se-ia.

 

Em vida, a vida consumira a vida. O pouco que restara da vida, ainda eram sonhos,  que não foram consumidos em vida.

 

Os filhos criaram asas. Por recomendaçào do destino e pelas circunstancias da vida, espalharam-se pelo mundo. Onde andam alguns, não sabe. Desconhece seus paradeiros.

 

Depois de longo tempo, o filho mais velho a chamara para conhecer os netos.

 

Ansiosa e apreensiva, adverte:

 

- O terceiro também é homem. Vai nascer amanhã.

 

Acrescentou:

 

- O destino não importa. O que vale é a felicidade.

 

Mas o que seria esta felicidade?

 

Convidei-a para sentar à janela do avião. O azul do céu, às alturas, não descortina o futuro, mas fascina à primeira vista.

 

E assim a viagem foi transcorrendo. O medo da altura se dissipara e o relato se tornara minucioso.

 

Aqui e acolá, uma pausa. Um acréscimo. Uma correção. Ora para retificar sua origem, para refazer o endereço, para se perguntar pelo destino que não importa e derivar uma possível réstia, uma passagem para a felicidade .

 

O desfiar dos fios da vida pouco tem a ver com os fios da vida e dos fatos. Sugerem magia e encantamento que são próprios da imaginação de quem desfia os fatos.

 

A bem da verdade, não iria para o Rio de Janeiro, onde moram um país encantado e um paraíso filtrado pelos portais de turismo. Ali habitam rumores de que a vida reproduz cenários de novelas e castelos de revistas de futilidades.  Ali as fantasias reinam  e se oferecem com toda exuberância aos visitantes no final do ano e no carnaval.

 

Porém, ela iria viistar outro mundo, um outro Rio. O Rio da corrupção que aflora nas favelas, na indigência política, na barbárie do narcotráfico, nos transportes coletivos degradados, na rede se saúde pública sucateada e nas escolas públicas abandonadas.

 

Iria visitar a inquidade das populações excluídas e da criminalidade na baixada fluminense. Poderia  almoçar com políticas compensatórias, dormir com o assistencialismo de estatísticas falsificadas e se distrair com índices socioecomomicos, fantasiados para o carnaval da Copa.

 

Iria conhecer aquela cidade subtraída dos sonhos e das realidades ambiguas. Dos horizontes disjuntivos, que separam  cordilheiras azuis da zona sul da aridez que devora o restante da  cidade.

 

Iria presenciar pleiteantes ao governo do estado disputando a farsa grotesca. Competindo palmo a palmo, com unhas e dentes a anuencia,  o apoio de forças ocultas que dominam quarteirões, bairros e municipios do Estado.  Iria conhecer o terror, a intimidação, a tortura e o assassinato se impondo como regras de domínio político e territorial.

 

Iria conviver com a indústria da revitalização urbana que proporciona licitações  fraudulentas e   consórcios públicos privados responsáveis pelo desmonte da sociabilidade. Com  caudais de corrupção brotando de tubulações de esgotos que inundam a cidade. Com a alucinação que transforma  sonhos em devastadoras calamidades justificadas pelos temporais.  Com o castelo de cartas montado para legitimar o desperdício de recursos em obras públicas que desmoronam.  

 

Mas a cidade, assim como própria vida, renasce a cada dia como possibilidades que são próprias da vida e da sociabilidade.

 

Por uma ventura, o auspicioso Rio, apesar da indigencia política e da iniquidade, não trairia os sonhos desta velha senhora,  que desde os 17 anos...

 

Soube depois. Seu neto nascera como prometido. De fato é homem. De fato é mais uma esperança, uma réstia de felicidade, trazidas pela cidade que traz o nome de um rio.


Data: 20/12/2013