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Artigo - O direito de usufruir da vida alheia

Wagner Braga Batista

 

Na atualidade, o direito de fruir, de consumir bens e serviços gerados pelos acúmulos técnicos e mediados pela economia de mercado, insere-se no ideário liberal como a liberdade dos modernos. Por intermédio desta digressão, o consumo destes bens converte-se num direito supremo que subverte a sociabilidade ao estabelecer paridade entre o acesso ao consumo e o exercício da cidadania. Este pressuposto confere aos cidadãos consumidores a condição de donatários da sociabilidade realizada em terras  devastadas..

Graças a esta prerrogativa, os novos consumidores sentem-se motivados. Emulados por pulsões empreendedoras mobilizam-se para subir na vida e obter por meio do consumo compulsivo um padrão economico conspícuo, que espelhe prestigio e poder em prejuizoda sociabilidade.

Esta sociedade autorreferente e espetaculosa, ao expor opulência, instaura novas formas de exclusão e violência simbólica, que se materializam por meio do consumo desenfreado de inutilidades. A adesão às marcas e aos icones da exuberância e da ascensão pessoal agride a consciencia coletiva. Denota o absoluto desprezo pela sorte dos que não têm direito à vida e lugar nas vitrines e passarelas do mercado.

O consumo conspicuo, usufruido por poucos, exaltado como um direito que suplanta a  existência humana só se torna tolerável por meio das emulações da cultura perdulária e da ideologia da liberdade de susufruir como um direito supremo. Esta lógica transforma necessidades humanas em algo desprezível diante dos caprichos, veleidades e gostos dos que podem consumir.

O direito a condições minimas de vida, cogitado por muitos humanos que padecem injustificáveis  privações, é visto como algo desprezível. O direito de se alimentar, de obter abrigo, de proteger o corpo condignamente, de resguardar sua saúde, de acesso à educação, ao conhecimento, entre outros, não se inscreve nas estratégias de marketing, nas fachadas de shoppings e nem tampouco têm lugar nas vitrines de boutiques.

Os necessitados não se enquadram nas estratégias de marketing que acionam a roda viva do mercado. Como refens inexoráveis de condições de vida legadas pela História, não têm lugar no presente uma vez que foram condenados ao seu passado. A reproduzir no presente  condições de vida de seus ancestrais. São portadores dos signos e estigmas odiosos imputados aos expropriados. Sob este viés, carregam o fardo da exploração histórica perpetrada pela expropriação do trabalho.

Estas absurdas relação sociais de iniquidade nos constrangem e nos advertem. Cobram da consciência coletiva a realização de direitos inequivocamente humanos. Exigem iniciativas que freiem e ponham fim a esta tendencia perdulária e perversa.

Estes sutis mecanismos de discriminação de seres humanos e geração de barreiras economicas são mascarados por políticas de alívio à pobreza. Atenuam também a emulação da mobilidade e da ascenção social, dimensionadas por indicadores renda e patamares simbólicos, que pouco alteraram estruturas de poder, a concentração econômica e as desigualdades sociais existentes.

Mecanismos de discriminação e de segregação social estão sujeitos a refinamentos. Mas a intolerância fala por si. Instrui a odiosa criminalização de comportamentos indesejáveis a elites, que ocupam pinaculos da sociedade e seus circulos do poder. Exemplo típico destas reações é o bloqueio de shoppings centers para impedir  aglomerações de jóvens de periferia no evento denominado rolezinho.

A imagems destes templos do consumo como redutos da democracia, subitamente sofre desgaste.

Emblemas da tolerância e do respeito às diferenças, subitamente vêem ruir esta falsa imagem, que celebra a diversidade apenas dos que têm poder de compra. Que cultua a liberdade de trânsito dos que contribuem para a auto-mutilação por meio do alienante consumo compulsivo. Dos que ostentam simbolos da segregação social, cristalizada em valores simbólicos de automóveis, de roupas, de aparelhos corretivos num universo de desdentados.

Estes templos profanos comportam a todos. A negros, homossexuais, adeptos de qualquer credo que se renda ao consumo compulsivo. Acolhem qualquer cultura ou religião, que demonstrem sua aderencia às estratégias de marketing. Que se prestem a legitimar a lógica excludente, as rotinas alienantes e os perversos fluxos de insanidade que animam a economia de mercado.

Neste universo aviltante, as prerrogativas de consumo reinam absolutas.  Subordinando necessidades humanas substantivas as suas veleidades, flanam solenes.

As vitrines que anunciam o paradisíiaco mundo da fruição não reconhecem o  inadiável direito à vida.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 02/04/2014