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Artigo - Tempos sombrios na UFCG

Luciano Mendonça de Lima

 

 

Doze vozes gritavam, cheias de ódio, e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco.

 

(A revolução dos bichos. George Orwel)

 

Nos últimos meses, a Universidade Federal de Campina Grande vem protagonizando acontecimentos que têm causado preocupação, espanto e indignação no seio da comunidade universitária e da sociedade local. Na raiz do problema, a forma como o grupo político que administra a instituição, há mais de 20 anos, vem tratando a questão da adesão dos Hospitais Universitários à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares.

 

Como é público e notório, em reunião realizada no dia 29 de outubro de 2012 o Colegiado Pleno do Conselho Superior da UFCG rejeitou, por 36 X 04, a adesão da instituição a EBSERH. Convém destacar que essa decisão foi precedida de um amplo processo de discussão, em que diferentes instâncias e setores da universidade e da sociedade civil se posicionaram contra a entrega dos HUs à mencionada empresa, em função dos muitos malefícios que ela pode causar aos seus trabalhadores, ao processo de formação de profissionais, no campo da saúde pública e aos usuários do Sistema Único de Saúde. Em vez de encaminhar essa decisão cristalina, que não dá margem a qualquer dúvida, a reitoria buscou de todas as maneiras desconstruir a decisão soberana da comunidade universitária, culminando com a absurda decisão monocrática, tomada pelo reitor Edilson Amorim, no dia 26 de março de 2014 de entregar de “mão beijada” os Hospitais Universitários Alcides Carneiro e Júlio Bandeira a sanha privatizante da famigerada EBSERH, que de pública só tem o nome, pois na prática submete a saúde e a educação à lógica fria do lucro. 

 

Por que tudo isso ocorreu? Quais as razões que explicam esse melancólico e autocrático gesto do reitor, de quem se deveria esperar o respeito a decisões coletivas de instâncias que estão acima de seus poderes? É que aonde tem havido um mínimo de debate democrático de ideias, o que propicia a oportunidade de se demonstrar o seu caráter pernicioso em relação aos interesses públicos, a EBSERH tem sido sempre derrotada, restando à minoria que se beneficia dela (leia-se, setores privatizantes ligados às áreas de educação e saúde de olho na maior rede de hospitais-escolas do Brasil, a casta de burocratas do MEC e seus sócios menores no interior das IFES, ou seja, os reitores e seu séquito de fieis servidores) apelar para a violação dos mais comezinhos vestígios da outrora autonomia universitária. Foi assim, por exemplo, na UFPB e UFPE, quando os conselheiros foram submetidos à situação análoga a de cárcere privado quando das respectivas reuniões do CONSUNI, com o agravante de que em Pernambuco o reitor convocou a polícia federal para manter a “ordem” no campus.

 

Daí o espetáculo estarrecedor a que aludimos, no início deste texto, da reitoria da UFCG se utilizar de todos os recursos que o poder lhe propicia para fazer valer seus interesses escusos: desqualificação e tentativa de isolamento da oposição, taxando-a de “minoria radical”, um exemplo clássico de inversão ideológica da realidade; tentativa de cooptação e intimidação de conselheiros pelos mais diversos meios; promoção de uma intervenção “branca” na administração do HUAC, nomeando uma comissão cujos representantes indicados não têm nenhuma legitimidade, num flagrante desrespeito à direção eleita democraticamente pela comunidade; uso da força bruta pura e simples, quando, por exemplo, no último dia 18 de março as polícias militar e federal, com o auxílio de uma empresa de segurança privada contratada, ocuparam a reitoria e cometeram todo tipo de arbitrariedade contra diversos membros da comunidade universitária, especialmente estudantes, que, democraticamente, protestavam contra a EBSERH, todo isso com a conivência e o aval do reitor.

 

Quando a adesão monocrática da UFCG a EBSERH se tornou pública, através de uma nota datada de 25/03/2014, porém publicada apenas, no dia seguinte, no site da instituição (o que pode ser um indício de que a farsa estava mais ou menos orquestrada desde antes), a resposta política da comunidade universitária teria que ser à altura do ato ditatorial, protagonizado pela administração superior encarnada na figura do senhor reitor. Essa veio na semana seguinte, quando após assembleias democraticamente convocadas pelas entidades representativas dos três segmentos, o DCE, o SINTESPB e a ADUFCG, foi aprovada a convocação de uma paralisação para o dia 03/04/2014, com a programação de uma série de atividades, como ato público, panfletagem e fechamento dos portões da UFCG. O acerto da mencionada decisão se refletiu no apoio da grande maioria dos componentes da comunidade universitária, que ao não comparecerem ao campus atendeu, à sua maneira, ao apelo das entidades. Quanto ao restante, que insistiu e compareceu a universidade naquele dia, foram quase todos convencidos da justeza do movimento, engrossando as suas fileiras ou então retornaram para seus locais de origem. Restou uma minoria (constituída por algumas conhecidas figuras que de tão subservientes formam uma espécie de “tropa de choque” da administração superior e pseudo-lideranças estudantis a serviço de interesses inconfessáveis) que, sob o pretexto do direito de ir e vir, protagonizou cenas deploráveis, algumas das quais, de tão grotescas, lembravam os piores espetáculos de “ópera bufa”, passando por outras mais graves como a depredação do patrimônio público da instituição, tais como destruição de cadeados e correntes, violação de portões e cercas, até casos comprovados de agressões físicas que vitimaram militantes que exerciam o direito elementar de expressar a sua indignação contra o ato truculento que a reitoria tentava impor a comunidade universitária, ao promover a adesão unilateral a EBSERH por cima de tudo e de todos.

 

Como se isso não fosse o bastante, no dia seguinte a reitoria tentou capitanear a seu favor alguns desses incidentes, ocorridos na manifestação da véspera. Se colocando na patética condição de vítima da ação violenta de supostos “vândalos”, o reitor publicou uma nota no site da UFCG no dia 04/04/2014 que, na verdade, é uma explícita ameaça aos que continuam ousando reivindicar, cujo teor telegráfico não fica em nada a dever ao que existe de mais reacionário na longa tradição do pensamento conservador brasileiro. Em outras palavras, na UFCG de hoje é crime lutar por direitos e pensar diferente do status quo.

 

Por outro lado, foi apostando na política do fato consumado que o reitor Edilson Amorim convocou para o dia 30 de abril de 2014 a 94ª reunião ordinária do colegiado pleno, a primeira a realizar-se depois do fatídico ato de adesão monocrática da UFCG a EBSERB promovida pelo “magnifico”, em 26 de março e 2014, e cuja pauta fazia silêncio sepulcral em relação à questão. Como seria de esperar, as entidades representativas dos três segmentos que fizeram uso da palavra aproveitaram a ocasião para denunciar a atitude ditatorial da reitoria, ao mesmo tempo exigiram a anulação imediata de um ato que além de ilegal é imoral, na medida em que atenta contra a democracia e a coisa pública.

 

Os fatos subsequentes que ocorreram posteriormente naquela data, e que culminou no término inesperado (ou seria abrupto?) da mencionada reunião por falta de quórum, são da exclusiva responsabilidade do senhor reitor, que ao operar a adesão monocrática da instituição à EBSERH usurpou poderes que extrapolavam em muito a sua alçada, maculando assim o cargo a que foi conduzido por delegação da comunidade universitária.

 

Aqui, cabe um alerta: em vez de tentar justificar o injustificável, os conselheiros deveriam tomar em suas mãos a resolução do impasse imposta pelo reitor, pois segundo o Estatuto e o Regimento Geral, marcos da autonomia universitária no âmbito da UFCG, cabe ao Colegiado Pleno “exercer o poder disciplinador sobre qualquer dirigente que deixar de cumprir decisão dos Órgãos Deliberativos Superiores”, cuja pena pode variar de uma simples advertência até a perda do mandato. Caso continue a abdicar de suas prerrogativas legais e políticas, o Colegiado Pleno corre o risco de ser coadjuvante de uma grande fraude, pecando assim por omissão. Ou então, mais grave, por cumplicidade.

 

Quis o “destino” que tudo isso estivesse ocorrendo, na UFCG, justamente, em 2014, quando há 50 anos um violento golpe de estado se transformou no ato fundante de uma sanguinolenta ditadura que haveria de durar 21 longos anos, interrompendo um dos mais intensos processos de mobilização popular de que se tem registro na história do Brasil. Nesse sentido, não houve setor ou instituição da sociedade brasileira que não tenha sido atingido pelo projeto autocrático, colocado em prática pelos militares e seus mentores de classe.  A universidade não foi exceção à regra, tendo sofrido um duro golpe por ter sintetizado as contradições que o país vivia às vésperas do golpe, incluindo aí as melhores expectativas de mudanças sociais, políticas e culturais. Assim, em vez de uma instituição crítica e democrática cujo conhecimento produzido estivesse a serviço da emancipação da maioria da população brasileira, o que assistimos, logo após 1º de abril de 1964, foi a implantação de um modelo de universidade autoritária que aprofundou seus vínculos com o mercado, em função do papel estratégico que a mesma passou a desempenhar no novo ciclo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro: a chamada modernização conservadora.  Nem mesmo as espetaculares mobilizações sociais e políticas que caracterizaram o final dos anos 1970 e início dos anos 1980 (dentre elas, o movimento docente que esteve na base de fundação do ANDES em 1981), que resultaram no fim da ditadura militar, foram capazes de derrotar de todo esse projeto de universidade e sociedade, que retomou novo folego a partir dos anos 1990 com a emergência do neoliberalismo, no Brasil, com direito à sobrevivência do entulho autoritário e o avassalador processo de expansão da mercantilização do saber, agora com o nome pomposo de universidade de “resultados” (para o capital) que ainda temos nos dias que correm. A novidade, advinda com o novo século 21, foi que determinadas forças políticas e acadêmicas de esquerda que no passado haviam participado da luta contra a ditadura e seu modelo de universidade reciclado mudaram de ideia e de posição e passaram a compor com seus inimigos do passado distante ou recente. Em artigo anterior, publicado neste mesmo espaço, procuramos recuperar parte dessa história e suas particularidades, no âmbito da UFCG, demostrando como ela se materializou na aliança consumada no ano de 2004 pelo atual reitor, um homem com um passado progressista e democrático, com o grupo representado pelo ex-reitor Thompson Mariz, a mais perfeita tradução do atraso e do obscurantismo político e acadêmico em nível local. Contudo, com o tempo ficou cada vez mais difícil distinguir, exatamente, quem é criador e quem é criatura em toda essa trama tragicômica.

 

Vista em perspectiva, portanto, a decisão monocrática do reitor Edilson Amorim se apresenta em toda a sua magnitude: um ato de força que aprofunda a privatização da educação e da saúde. Para aqueles que não sucumbiram à razão cínica do poder e continuam a acreditar em uma universidade pública, gratuita, democrática e de qualidade socialmente referenciada, resta o longo caminho da luta coletiva, travada a cada dia, para reverter essa e outras práticas ditatoriais que instauraram o estado de exceção permanente na UFCG.

 

 

Luciano Mendonça de Lima é professor da UFCG


Data: 19/05/2014