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Artigo - Polícias e Estado democrático de direito no Brasil

José Maria Nóbrega

 

 

O Brasil “viveu um obscurantismo de 21 anos, sem transparência, durante os quais as várias polícias e os bombeiros foram forças auxiliares do Exército. Esse período deixou uma estrutura funcional da segurança pública desligada dos governos estaduais e municipais. Porém, essa é uma visão a partir das polícias; durante o regime militar, os governos estaduais e municipais também se estruturaram de maneira a deixar a segurança pública de fora. Se, por um lado, as polícias, o sistema penitenciário e o Judiciário se organizaram para viver sem o estado nem os municípios, os estados e municípios também se organizaram para viver sem eles. O que se seguiu foi um caos organizacional e institucional: a segurança pública, solta e corporativista, com uma revinculação difícil aos governos estaduais de estrutura arcaica, que insistiam em coloca-la dentro de secretarias de justiça” (Gláucio A. D. Soares no prefácio de SAPORI, 2007).

 

O problema das políticas públicas de segurança está no desafio de transformá-las em políticas de estado e não, apenas, de governos que se alternam nos processos democráticos de eleições. Como pode ser visto nas linhas acima colocadas, a segurança pública é uma política pública com sérios problemas “genéticos” em nossa jovem (semi)democracia.

 

Parte das nossas polícias é vista diariamente em polêmicas relacionadas às suas práticas sociais, geralmente, de caráter violento, sobretudo com a população mais pobre. A questão é: por que as polícias brasileiras agem de forma truculenta em muitos cenários sociais, sobretudo atingindo as pessoas mais pobres?

 

A ação da polícia passa pela Segurança Pública, um direito civil e social garantido constitucionalmente, mas com graves limitações em suas matérias constitucionais. Vamos iniciar com o artigo 144 da CF/88 relativo ao papel das polícias na Segurança Pública. Além disso, a segurança pública aparece em artigos constitucionais referentes aos direitos civis e sociais.

 

Na Constituição Federal de 1988, no seu Título V, Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, Capítulo III, Da Segurança Pública, tem-se escrito:

 

Art. 144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

§ 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

§ 2º - A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais.

§ 3º - A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.

§ 4º - Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

§ 5º - Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

§ 6º - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

§ 7º - A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.

§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

§ 9º A remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do Art. 39.

 

Pelo que está inserido na Carta Magna, nos artigos quinto, sexto e sétimo não há regulamentação das atividades policiais militares. A lei para disciplinar a organização e o funcionamento dos órgãos policiais militares ainda não foi elaborada pelos legisladores da nossa República. Os regimentos internos dessas corporações são os responsáveis pela organização interna e administrativa das PMs. O que prevalece nessa sistemática é uma polícia voltada para o confronto ao inimigo. Um policial respeitador da hierarquia, por sua vez preso a ela. Há destinação das subordinações e de suas tarefas macro, bem como quem pagam seus ordenados, mas não há lei ordinária conduzindo o processo funcional das PMs. As Polícias Militares tem a principal função de segurança, mas sua subordinação a duas instâncias institucionais, as Forças Armadas e o governo de estado, bem como seu desenho institucional pouco propício a segurança cidadã, estão entre os entraves para o avanço da segurança pública democrática.

 

As polícias civis ficam responsáveis pela investigação e a produção do inquérito policial, documento administrativo não processual. Já as PMs ficam responsáveis pelo policiamento ostensivo e preventivo. São dois ciclos feitos de forma apartada, não houve preocupação por parte do legislador em resolver este problema. E isso tem raízes na Assembleia Nacional Constituinte de 1987. Os legisladores não ultrapassaram os limites institucionais do período de exceção, mantiveram as PMs e os governos estaduais aumentaram o seu efetivo.

 

As PMs seguem a lógica militar em suas abordagens e funcionamento institucional. O confronto invés da ação cidadã e a hierarquia em lugar da autonomia policial impactam negativamente no dia a dia da instituição policial responsável pela manutenção da lei e da ordem. E esta é um bem público dos mais importantes para a consolidação de um regime político democrático.

 

O processo civilizacional também é necessário para a mudança de comportamento da sociedade em torno da violência. “A gradual monopolização do uso da violência pelas instituições policiais, judiciais e prisionais do Estado está sociologicamente conectada à gradual mudança nas atitudes e valores dos indivíduos em termos da manifestação de suas propensões à agressividade” (SAPORI, 2007). No entanto, avaliar o caminho histórico-institucional das polícias é tarefa fundamental para entender o processo de socialização do comportamento de seus atores sociais que são, no limite, recrutados da sociedade e, dessa forma, repetindo a cultura social dentro das instituições coercitivas.

 

Desde o século XIX a organização policial é dualizada. A militarização tem-se início no Brasil Império, mas, a partir da República Velha, as Guardas Civis fardadas passaram a responsabilizar-se pela função ostensiva de polícia. “A polícia civil originou-se da administração local, com pequenas funções judiciárias, ao passo que a polícia militar nasceu do papel militar do patrulhamento uniformizado de rua. Com o tempo, a polícia civil teve suas funções administrativas e judiciais restringidas, enquanto a polícia militar sofria frequentes ataques como inadequada para o policiamento diário, motivando a criação de outras polícias uniformizadas concorrentes, principalmente a Guarda Civil” (BRETAS, 1997 apud FONTOURA et al 2009: 136).

 

Antes do golpe militar em 1964 as PMs eram polícias aquarteladas e voltadas para questões de segurança interna. No período militar as PMs passaram a agir na segurança pública, uma segurança voltada para a defesa do estado. Os constituintes não superaram essa mudança, mantiveram as prerrogativas militares numa área fundamental para a qualidade da democracia brasileira: a sua segurança pública.

 

“É somente em 1969 que ocorre a fusão entre as guardas civis e as forças públicas dos estados, por meio do Decreto-Lei nº 667, modificado pelo Decreto-Lei nº 1.072/1969, que extingue as guardas civis e institui as Polícias Militares (PMs) estaduais com competência exclusiva pelo policiamento ostensivo. Antes dele, existia a PM como uma polícia aquartelada, utilizada para conter greves de operários, manifestações públicas etc.  Esta PM estava isolada da população e era chamada a agir em questões de ordem interna. A partir do Decreto-Lei, ela passa a incumbir-se do policiamento ostensivo e torna-se proibida a criação de qualquer outra polícia fardada pelos estados” (FONTOURA et al 2009: 137)

 

As PMs foram instituídas no regime de exceção em substituição às guardas civis na tarefa ostensiva, passaram a se subordinar diretamente às Forças Armadas. Uma polícia preparada para o combate ao inimigo interno, ou seja, aos guerrilheiros e opositores do regime. A lógica de manutenção da ordem democrática fora substituída pela lógica da guerra.

 

Na formatação da CF/88 os veto players ao avanço democrático da segurança pública terminaram por prevalecer na Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, que ficou responsável pela composição dos artigos referentes à segurança pública na nova constituição brasileira. Nesta Subcomissão prevaleceram parlamentares suscetíveis aos interesses castrenses.

“Com isso, a subcomissão rejeitou a criação do Ministério da Defesa; rejeitou a abolição do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do CSN; manteve o desenho da PM como força auxiliar do Exército, e as Forças Armadas com funções na ordem interna, entre outras continuidades relevantes” (FONTOURA et al, 2009: 141).

 

A dualização das polícias se manteve em plena democracia. As PMs, apesar dos salários serem pagos pelos governos de estado, mantiveram sua subordinação, também, ao Exército, fato este não superado após findo regime militar. O problema genético constitucional impede o avanço da democracia para uma segurança pública livre da violência e truculência do modelo militar.

 

“As polícias no Brasil estão divididas em dois ciclos: um investigativo/judiciário, outro ostensivo. Há grande dificuldade em fazer com que os dois ciclos se complementem devido à falta de cooperação entre os atores político-sociais, policiais civis e militares" (NÓBREGA, 2011: 17).

 

Em artigo publicado em 2011 (NÓBREGA, 2011), afirmei estes argumentos num caso empírico. O uso das Forças Armadas nas operações de “segurança interna” no Complexo do Alemão leva-nos a refletir sobre o artigo 142 da CF/88, dita Constituição cidadã. As Forças Armadas como força policial é possível em regime democrático? Os países de democracia plena não tem este papel institucional sendo desempenhado pelas suas forças armadas.

 

Para Rawls (2004) um exército não deve ser usado contra seu próprio povo, mas parece que no Brasil o conceito de povo não se insere nas comunidades excluídas do processo civilizador. O uso frequente das Forças Armadas nas favelas cariocas demonstra muito bem como está estratificada a sociedade brasileira.

 

Como foi dito anteriormente, as prerrogativas militares foram mantidas na CF/88. O artigo 142 revela a face verde-oliva de forma mais expressiva essas prerrogativas na democracia brasileira. Neste artigo as Forças Armadas são os garantes da lei e da ordem internas. Para Stepan (1988) uma prerrogativa de alta intensidade. Na essência do referido artigo, temos:

 

“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (CF/88).

 

As lacunas da lei levaram ao uso e abuso na utilização das Forças Armadas em questão interna, sobretudo no início da Nova República. Mesmo após reformas efetuadas neste artigo, atribuindo ao Presidente da República, ao Presidente da Câmara dos Deputados e ao Presidente do Supremo Tribunal Federal as prerrogativas institucionais da convocação das Forças Armadas para assuntos internos, o militarismo ainda prepondera (NÓBREGA JR., 2009: 166-169).

 

Voltando ao exemplo empírico do uso indevido, porém legal, das Forças Armadas em segurança pública (interna), em 2010 o Complexo do Alemão passou por tal investida castrense legalmente instituída pelo Estado brasileiro. O Rio de Janeiro é palco de grandes eventos de violência, é conhecido pelos seus altos indicadores de violência, pelo crime organizado e narcotráfico dentro e fora das grandes comunidades favelizadas.

 

Em novembro de 2010, várias tropas de Segurança do Estado, as polícias e as Forças Armadas, adentraram no complexo de favelas do Alemão e da Vila Cruzeiro na grande Rio. Houve grande divulgação pela mídia, em tempo real.

 

A sociedade, sobretudo sua elite econômica, aprovou a “invasão”. Mas, os efeitos colaterais não atingiram esta elite, e foram expressivos os resultados de violência.

 

Não foi a primeira vez, nem será a última, que as Forças Armadas adentram como instituição coercitiva para a “manutenção da lei e da ordem” no mesmo complexo de favelas carioca. Em 2007, a ocupação se deu por conta do Panamericano[1], onde foram vitimadas 19 pessoas em apenas um dia de ocupação dessas forças, fato este comprovado por investigação efetivada sob a pressão de grupos organizados da sociedade civil (NÓBREGA, 2011).

 

A Segurança Pública em democracias plenas parte de princípios liberais clássicos do ponto de vista político. Uma conjuntura bipartite: liberalismo somado ao igualitarismo perante as leis do Estado Democrático de Direito. Onde este igualitarismo se vê na capacidade do Estado de igualar os desiguais (materialmente) para que estes não sejam distinguidos legalmente, perante o Estado que deve ser democrático de direito.

 

A partir do momento que o uso da força pelo Estado ultrapassa a linha tênue do Estado Democrático de Direito, o aspecto autoritário do regime político toma força, diminuindo ou fragilizando a democracia. Esta característica autoritária foi revelada pelas “forças de segurança” do Estado brasileiro no seu uso descabido naquelas operações executadas nas favelas cariocas em 2010.

 

Um manifesto foi executado pelas de Organizações de Direitos Humanos sobre os acontecimentos no Alemão e na Vila Cruzeiro, em 2010:

 

“Há três semanas, as favelas do Alemão e da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, se tornaram o palco de uma suposta ‘guerra’ entre as forças do ‘bem’ e do ‘mal’. A ‘vitória’ propagada de forma irresponsável pelas autoridades – e amplificada por quase todos os grandes meios de imprensa – ignora um cenário complexo e esconde esquemas de corrupção e graves violações de direitos que estão acontecendo nas comunidades ocupadas pelas forças policiais e militares. Mais que isso, esta perspectiva rasa – que vende falsas ‘soluções’ para os problemas de segurança pública no país – exclui do debate pontos centrais que inevitavelmente apontam para a necessidade de profundas reformas institucionais”.[2]

 

Residências e comércios foram invadidos sem condução do Estado de Direito (democrático). Pessoas tiveram seus direitos civis violados – se é que aquelas pessoas têm tais direitos no mundo real – os saques praticados pela “guarda pretoriana” do Estado passaram por cima do direito constitucional de propriedade. As Forças Armadas e as tropas das PMs, do BOPE, e do CORE, forças militarizadas federais e estaduais, “pisaram” e passaram por cima do Estado de Direito, tudo endossado pela CF/88, um documento ambíguo[3].

 

O militarismo das instituições coercitivas brasileiras corrobora para que elas não respeitem o Estado Democrático de Direito, pois:

 

1. São recrutadas e treinadas para o combate. O confronto ao inimigo, os moradores das comunidades, o destituído de proteção estatal. Como numa guerra, o inimigo de ser extirpado.

2. Este caráter militar condiciona às instituições à lógica da guerra, da manutenção da “ordem” pelo uso incondicional da força desmedida. Daí as forças policiais brasileiras matarem tanto.

 

 

José Maria Nóbrega é professor da UFCG e coordenador do NEVU

 



[1] E há de se destacar o ano de 2014 como mais um ano de uso das Forças Armadas nas comunidades cariocas por questão da Copa do Mundo.

[2] E-mail recebido em 06.01.2011 em que assinaram as seguintes organizações da sociedade civil: Justiça Global; Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência; Conselho Regional de Psicologia – RJ; Grupo Tortura Nunca Mais – RJ; Instituto de Defensores de Direitos Humanos; Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis”.

[3] BOPE: Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

CORE: Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Rio de Janeiro.


Data: 20/05/2014