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Critérios de produtividade na avaliação acadêmica levantam críticas sobre os rumos da ciência

Retratação de artigos fraudulentos aumentou em 10 vezes desde 1975

 

 

A última edição do British Medical Journal discute se fraudes na pesquisa devem resultar em prisão. A radicalidade da sugestão ecoa a crescente preocupação com a impostura científica, cujos desdobramentos não raro desembocam em escândalo. Publicada na revista Nature em janeiro, a descoberta de uma técnica para transformar células adultas em pluripotentes, capazes de se diferenciar em qualquer outro tipo de tecido, foi retratada após meses de polêmica.

 

O falso pulo do gato: meia hora banhadas em ácido e cinco minutos em uma centrífuga induziriam as células a uma condição análoga à das células-tronco embrionárias, prontas para virar tecido ósseo, cerebral e cardíaco, e tudo isso sem alertar o sistema imune contra invasão. Laboratórios não conseguiram reproduzir o experimento, e em abril o instituto Riken, no Japão, acusou a líder do projeto, HarukoObokata, de falsificação intencional. Além de mostrar "desleixo" no registro dos testes, Obokata editou imagens de DNA para que seus resultados parecessem melhores do que de fato eram.

 

O instituto concluiu que faltava a Obokata "não apenas a noção de ética na pesquisa, como integridade e humildade enquanto cientista". O vexame lançou a Nature em uma revisão de procedimentos para aceitação de artigos "para garantir que as verbas governamentais não sejam desperdiçadas e a confiança dos cidadãos na ciência não seja traída".

 

Mas o problema pode ser menos particular do que o instituto e a revista sugerem. De acordo com pesquisadores da Faculdade de Medicina Albert Einstein, em Nova York, a retratação de artigos fraudulentos aumentou em 10 vezes desde 1975.

 

- Por quê? É mais fácil achar desvios em meio eletrônico, mas a pressão também aumentou para que os pesquisadores publiquem rapidamente e com o maior impacto possível para garantir financiamento e promoções. Agora temos um indexador individual de produtividade que não escapa a empregadores e comitês de promoção - aponta Julian Crane, da Universidade de Otago (Nova Zelândia), ao fundamentar a sua rejeição à criminalização das fraudes.

 

No ano passado, o americano John Bohannon mostrou na Science o que aconteceu quando ele enviou um artigo sem pé nem cabeça para 304 revistas científicas: 157 delas aceitaram. Assinado por um autor fictício de nome estapafúrdio (OcorrafooCobange), o trabalho vinha de uma universidade que também está para ser achada no mundo real: o WasseeInstituteof Medicine, sediado em Asmara, não existe fora da imaginação de Bohannon.

 

- Revistas científicas de acesso aberto se expandiram a uma indústria global, movida por taxas para publicação em vez de inscrições tradicionais - explicou Bohannon.

 

No Brasil, de olho em alavancar o seu "fator de impacto" (F.I., baseado na quantidade de citações de artigos publicados nos periódicos), quatro revistas científicas foram enquadradas no ano passado em um esquema de "citação cruzada": uma cita a outra, que cita a próxima, e assim sucessivamente, até que todas pareçam muitíssimo relevantes. O quarteto ficou de castigo: F.I. suspenso por um ano.

 

Editor da Clinics, Maurício Rocha e Silva foi afastado do cargo, alegando ao periódico Nature que o esquema derivou da frustração com os critérios da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Ministério da Educação, cujas políticas de ranqueamento baseadas no F.I. dificultariam o crescimento de revistas pequenas ou recém-lançadas, sempre preteridas pelos pesquisadores.

 

MERITOCRACIA?

RandySchekman, Nobel de Medicina de 2013, chamou recentemente as renomadas revistas Nature, Science e Cell de "tirânicas", veículos de critérios menos científicos do que mercadológicos, que valorizariam feitos "chamativos" e temas "da moda". Nobel de Física de 2013, Peter Higgs também andou reclamando, por entender que, conduzisse hoje os seus estudos, seria demitido por falta de produtividade. Para fechar o carreto dos nobéisrebéis, um dos premiados em 2002 na categoria Medicina, Sydney Brenner, diz que "agora temos laboratórios que não funcionam como os de antigamente, onde as pessoas eram independentes e perseguir as suas próprias ideias".

 

Em entrevista concedida à revista britânica King'sReview, Brenner cogita que Fred Sanger, cientista fundamental na façanha de sequenciar o RNA e o DNA, "não sobreviveria no mundo da ciência de hoje" pois logo ganharia a pecha de - adivinhe lá - improdutivo. De acordo com Brenner, os pesquisadores agora devem seguir uma rota estreita e previsível porque "os burocratas da ciência não querem correr riscos".

 

Algumas das críticas mais contundentes ao sistema brasileiro têm sido assinadas pelo professor Renato Santos de Souza, do programa de Pós-Graduação em Extensão Rural da UFSM. Em artigos bastante difundidos na internet, ele diagnostica uma "doença da normalidade" no mundo acadêmico, tomado que estaria por um combo nocivo de burocracia e meritocracia.

 

- Há uma insana corrida por publicar, não importando o quê, como forma de alimentar currículos. É mais seguro produzir "mais do mesmo", reproduzir, com pequenas modificações, aquilo que já vem sendo pesquisado e publicado. Ou seja, a lógica também é produzir em grande escala produtos (neste caso artigos) com baixo custo e baixo risco - afirma o professor, comparando a produção de conhecimento hoje ao modelo industrial fordista.

 

De acordo com Souza, "a estrutura institucional, com suas normas, critérios de avaliação, distribuição de recursos e reconhecimento profissional que induz a esta forma de produção, cujo produto é o artigo, e não o conhecimento em si" estimula que pesquisadores, professores e alunos se tornem "burocratas comportamentais". O privilégio da quantidade sobre a qualidade faria com que os meios se tornassem "fins em si mesmos".

 

- Já participei como avaliador de processos para bolsas de iniciação científica em que a consistência e relevância do projeto submetido representava menos de um centésimo da pontuação que a maioria dos candidatos alcançavam. O restante era a produção bibliográfica dos currículos dos pesquisadores - conta Souza.

 

A universidade espelharia, portanto, a "lógica organizacional e institucional altamente estruturada" representada no país pela CAPES e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

De acordo com o CNPq, "a ciência mundial se expressa fundamentalmente por meio de artigos científicos publicados em revistas especializadas com revisão por pares seletiva, uma sistemática que permite não apenas oferecer controle de qualidade da ciência produzida como também provê ampla divulgação de novos achados, permitindo o avanço mais rápido e profundo nas fronteiras do conhecimento".

 

O órgão destacou também que "a produção acadêmica deve ser avaliada em suas múltiplas facetas, e no quesito publicações deve ser dado destaque à qualidade e relevância dos artigos científicos, e não apenas à quantidade". Segundo o CNPq, os seus comitês julgadores "são orientados a avaliar a contribuição científica, tecnológica e de inovação. Para tal, no Curriculo Lattes do CNPq os pesquisadores possuem campos para incluir sua produção tecnológica, tais como produtos, processos, patentes, registros, dentre outros."

 

Também contatada, a CAPES informou que não poderia atender à reportagem em tempo hábil.

 

(DES)PRESTÍGIO POLÍTICO

 

A chanceler alemã Angela Merkel já perdeu dois ministros enredados em acusações de plágio. Em 2011, o dono da pasta da Defesa, Karl-Theodor zuGuttenberg, renunciou quando acharam 130 páginas suspeitas em sua tese de doutorado em Direito. Já a confidente de Merkel, a ex-ministra da Educação AnetteSchavan, pediu demissão em fevereiro do ano passado, após acusações de plágio levarem à cassação do seu diploma de doutorado pela Universidade de Dusseldorf.

 

Mais recentemente, em abril, o ministro de Cooperação e Desenvolvimento, Gerd Müller, sofreu nas mãos do "caçador de plágios" Martin Heidingsfelder, que foi buscar em uma tese de 25 anos atrás evidências de que Müller se valeu de ideias alheias para emplacar o seu trabalho na Universidade de Regensburgo.

 

Se os teutônicos não perdoam a gambiarra científica, na Rússia um título de Doutor é tão solene que, no afã de alcançar tal prestígio, deputados, procuradores, ministros e até um sacerdote já estiveram entre os suspeitos de plágio. Não à toa, há russos de espírito detetivesco dedicando os seus dias a rastrear artigos assinados por políticos e celebridades.

 

Após investigação de poucos meses, o grupo Dissernet revelou cerca de mil teses de famosos que, em alguns casos, sequer haviam lido o que assinaram. O governador da região de Tula, Vladimir Gruzdev, foi acusado de copiar praticamente todas as 182 páginas de sua tese, reservando-se o pudor de tirar do próprio tino uma introdução e um título.

 

Uma petição online reuniu milhares de assinaturas contra o advogado Pavel Astakhov, delegado do Kremlin para os direitos das crianças, acusado de copiar textos sem citar a fonte. O blogueiro Viktor Levanov, munido do sistema Antiplagiat, farejou quase 20% de frases roubadas em uma monografia da secretária de Estado e vice-ministra da Educação, Natália Tretiak. Não ficou barato nem para o reitor da Universidade Pública de Volvogrado, OlegInshakov, que teria copiado quase 6% do texto que culminou em um trabalho sobre gestão de crise com o uso da tecnologia. Causou surpresa aos russos, portanto, quando o Antiplagiat descobriu que uma tese do ministro da Educação, DmítriLivanov, era completamente original.

 

(Zero Hora)


Data: 22/07/2014