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Artigo - A morte menina

Hiran de Melo

 

Ouvi dizer que os mais antigos do que os atuais antigos não enterravam os mortos em cemitério público. Acontecia que - por não aceitar que a morte fosse o fim - cada família construía, anexo a casa, um templo onde enterravam seus mortos.

 

A partir daquele momento e daquele lugar, os seus mortos passavam a proteger sua família da ação dos mortos das famílias rivais. Nessa existência, sob outra forma, davam continuidade aos vícios e virtudes. Começava, então, o culto aos mortos.

 

A família antiga, dos mais antigos, se organizava em torno desse culto - onde os seus mortos eram ouvidos, para conselhos ou posicionamentos familiares. Mas nem todos podiam ouvi-los, apenas o líder - o primogênito do antigo líder morto - numa sucessão hierárquica masculina. Era o culto ao pai, ministrado pelo filho, rei e sacerdote.

 

Os antigos de ontem professavam a fé de que existia algo transcendental na partida, assim como professam os antigos de hoje. Assim sendo, ao longo dos séculos, com variantes de um povo a outro: a morte sendo apenas a porta da transcendentalidade.

 

O culto à morte é considerado por muitos como a origem das religiões e das civilizações. Depois dele foi que surgiu o culto à vida - onde a vida está em primeiro lugar - passando a morte a ser lembrada apenas na dor extrema da partida.

 

Dos anos das luzes, em que a razão se fez soberana, até a presente época tem avançado consideravelmente a convicção de que a vida deve ser orientada pelo valor dela mesma, não pelo prêmio a ser alcançado em outra vida, no pós-morte.

 

Hoje não existe propriamente uma religião da vida; mas, sim, uma celebração permanente à vida - com sacerdotes, grandes ídolos da cultura e dos esportes - onde muitos vivem sem pensar numa existência pós-vida. A morte começa a ser vista muito mais como um momento de dor do que um momento de passagem à vida eterna.

 

Comecei há algum tempo, sem muito alarde, a aguardar a chegada da morte. Sem nenhuma inquietação ou qualquer aperreio com sua demora. Eu a aguardo, serenamente, como quem respira sem se dar conta do respirar.

 

A falta periódica de plena saúde física me aborrece, não por que ela pode abreviar a chegada da morte, mas pelo sofrimento que me causa. Sei que a morte não traz dor. Ao contrário, ela retira todas as dores. Pois é a vida que começa na dor. Sem dores não há vida.

 

Comecei também a pensar na morte não mais como uma parteira de uma forma diferente de existir. Porém, como um fim mesmo da existência. Sendo a morte, como pode ser, um mergulho no nada.

 

O fato de que do nada o novo ressurge não é um milagre. É o natural. Assim sendo, podemos dizer que a morte é a parteira de uma vida nova - que se constitui num mergulho no nada - simples como tudo, nos fazendo mergulhar numa nova vida.

 

O Livro Sagrado afirma que pairando sobre o caos Deus fez surgir o cosmo. No caos não há ordem, sem ordem nada existe para o homem. Assim é dito: "do nada tudo surgiu".

 

Para muitos jovens, herdeiros da idade da luz, a morte é condutora ao caos original. Para outros, mais radicais, o caos sempre existiu, sendo o cosmo apenas uma ilusão. Esta visão, embora fundamentada nas recentes pesquisas científicas, está em harmonia com o antigo adágio de que o mundo é uma ilusão.

 

Voltar ao caos e ter uma nova abertura ao cosmo significa que, numa nova vida, nada da antiga existência resta. Essa nova vida será tão nova que nada nos revelará ou traduzirá. Além da esperança de que os nossos mortos nos recebam com sorrisos de bem aventurança, nada levamos.

 

Falo em esperança porque tenho observado que, por mais radical que seja o homem, na hora da despedida, sempre há um olhar para os seus pais, irmãos, ente querido... para os que antes já partiram.

 

Alguns ainda cultuam os mortos, num retorno ao tempo dos mais antigos, e, embora não os enterrem em templos particulares, acreditam que eles estão presentes nas suas vidas. Agora, elegem um local comum, chamado às vezes de centro, onde “ouvem” as suas orientações de vida. E, assim, a morte mostra a sua fase menina.

 

 

Hiran de Melo é professor da UFCG


Data: 16/09/2014