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Artigo - O Barro e o Artífice

Hiran de Melo

 

É fato sabido que a um pedaço de barro molhado é possível imprimir várias formas, criando objetos utilitários ou, simplesmente, para serem apreciados como belos. Enquanto o barro estiver úmido é possível fazer mudanças na forma, buscando o objeto desejado mediante um projeto prévio ou, apenas, guiado pela intuição. Depois de satisfeito o desejo do artífice, o objeto encontrado é levado ao fogo para ter a sua forma preservada.

 

Algo semelhante a esta última etapa acontece com o homem quando ele é colocado diante de um desafio. A vitória terá o poder de enrijecer as qualidades (virtudes ou defeitos, conforme o ponto de vista) que propiciaram tal feito. Ela é igual a fogo no barro.

 

Quando ainda aprendiz, eu fui colocado na condição de mestre. Precisava de uma profissão e esta me foi oferecida. Todavia, tudo que eu sabia de ensino fora aprendido na condição de aluno e, muitas vezes, na condição de observador passivo.

 

Deparei-me com um grupo carente que aceitava de bom grado o que lhe fosse oferecido. Algo assim como: melhor pouco do que nada. Consegui passar pelo fogo da primeira sessão e voltei igualzinho à segunda. Isto é, com as características que me fizeram vencedor naquele desafio. A forma estava cristalizada pelo fogo do êxito. Nesta pedra bruta era admissível, apenas, polimentos.

 

Muitas outras situações semelhantes me foram colocadas ao longo da vida. O que vale dizer, sem prévio treinamento, sem a fundamentação sólida necessária e suficiente. E, igualmente, as vitórias foram imprimindo as suas marcas.

 

Hoje, em frente ao portal que conduz a terceira idade, contemplo o meu semblante e não me sinto satisfeito. Faltou um projeto consistente e consciente. Tudo, ou quase tudo, fora feito na base da pura intuição ou improviso.

 

Se eu fosse de um barro comum - assim com você não é - seria impossível qualquer mudança. Entretanto, o barro que nos constitui leva o sopro do Logos. No humano há um elemento que torna o barro velho  e endurecido em um barro novo e maleável. É o sofrimento, decorrente de perda ou derrota.

 

Quanto, então, surge uma audição com o eu divino (o Logos), muito diferenciada da fala do ego. Este chora pelo apego à forma antiga do campeão, que jaz quieto e derrotado pelas novas exigências da vida no deserto. Aquele mostra no horizonte um amplo sorriso de criança que acolhe e oferece uma vida em eterna plenitude, sem ser mais uma miragem. E, assim, no ápice do deserto, é possível encontrar o caminho que conduz ao oásis.

 

Hiran de Melo é professor da UFCG


Data: 15/10/2014