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Artigo - Educação baseada no sentimento ou na razão?

Hiran de Melo

 

Encontrei um par de sandálias na garagem aqui de casa. Pertencia a um dos meus filhos. Então, resolvi levá-las ao quarto dele. Lá chegando, joguei-as em um local "apropriado". Mas, uma das sandálias caiu virada para baixo. Não caíra na ordem esperada. Nada demais nos dias de hoje, qualquer ordem é aceita, está bom. Mas, não era assim nos dias da minha infância...

 

As sandálias tinham que obedecer uma ordem exata: estarem voltadas para cima, para os céus. Do contrário, minha mãe sofreria uma séria ameaçada de morte. Estaria sendo mal agourada, e o culpado seria eu. Portanto, imediatamente, se fazia necessário colocá-las na ordem preestabelecida pelos antigos.

 

Apesar da minha mãe já haver morrido, a lembrança da ameaça fez com que eu voltasse para colocar o par de sandálias na ordem certa. A Ordem das coisas me fora apresentado de forma a não esquecer jamais.

 

Este é um simples exemplo. Posso citar um montão, mas não será necessário. O que eu quero aqui dizer é muito simples: fomos - os que possuem mais de cinquenta anos - educados na base da emoção, do sentimento. Tudo tinha um lugar certo, e assim se formava uma visão límpida, cristalina, do que era certo e do que era errado.

 

A defesa da família em primeiro lugar, a integridade dos pais, a conservação do patrimônio e a lembrança das lições dos avós, mesmo que modesta, era uma questão de sentimento, não de razão. Os valores eram passados para os filhos mediantes parábolas, contos, alegorias, símbolos, lendas e os mistérios.

 

Hoje estes mecanismos são ditos arcaicos e os próprios valores tidos como atrasados, reacionários, etc. No seu lugar é erigido um templo à razão. O ensino dos valores deve se dar mediante mecanismos racionais. O convencimento pela razão. Nem preciso me deter muito para lembrar que os tais valores contemporâneos são relativos, dependem de cada um, do grupo e/ou dos interesses conjunturais.

 

O valor problematizado neste texto é o sentido da adoção de uma ordem. Ou, em termos simples, questionar se existe algum ganho em dispor os objetos de um quarto em conformidade com um preestabelecido ordenamento?

 

Vamos encontrar, para esta questão, duas respostas opostas e tantas razões para fundamentá-las; quantas você tiver ouvido para ouvi-las e paciência para suportá-las. No mundo do relativismo, do depende para quê, do em nível de... tudo é possível. Exceto, o juízo definitivo da validade de qualquer valor.

 

O lugar de educar os filhos foi deslocado da casa, do lar familiar, para a escola; e, lá, a tentativa de educar se faz mediante disciplinas. Disciplinar a mente mediante o estudo da matemática, da física, da química, da história, da geografia, da economia, da sociologia, da biologia, da... Um conjunto quase infinito de disciplinas que fragmentam o conhecimento estabelecido e, nesta fragmentação, espera-se que o aluno adquirira unidade e ordenamento na sua atividade mental.

 

Citei algumas disciplinas e falei que elas são tantas que formam um conjunto quase que infinito. E se você pensa que estou exagerando, lembre-se que cada uma das citadas se divide ainda em muitas outras partes, estudadas muitas vezes isoladamente. Matemática, por exemplo, é estuda nas disciplinas aritmética, álgebra, geometria, geometria analítica, cálculo integral e diferencial.... e, cada uma delas, ensinada por professores distintos, especialistas na  matéria de cada disciplina.

 

Não é à toa que uma parte do conhecimento é denominada de disciplina. O objetivo principal do ensino é disciplinar o aluno que chega à escola sem ter sido educado pelos pais. Também, não é à toa que os primeiros "educadores" dos alunos não são chamados de professores, mas de tios e tias. Tios e tias de mentirinha, é claro. Em verdade, pobres professores que buscam a aprovação dos seus "sobrinhos" e "sobrinhas" para garantir os seus empregos.

 

Além da fragmentação do conhecimento e da falta de interação entre os que ministram disciplinas distintas, também observamos a presença, subjacente nos discursos de cada professor, do ensino de ideologias que muitas vezes visam objetivos opostos.

 

Na escola privada o foco da administração é o lucro, não poderia ser diferente. Na escola pública é atender os indicadores que servem de base para a avaliação do desempenho da escola, tipo a redução da evasão e a aprovação dos alunos.

 

Observe que os objetivos são semelhantes - das escolas privadas e públicas – e que tudo pode ser resumido na palavra produtividade. Tanto é assim que um novo conceito já se impõe: indústria do ensino.

 

A escola não pode oferecer outra coisa, senão treinamento, habilitação para o exercício de uma determinada profissão. Jamais a escola, como hoje se apresenta, poderá oferecer educação e observância de valores.

 

Na ausência da família e da não adequação da escola ao ensino de valores, quem educa? As igrejas, os partidos políticos, as empresas de comunicação, os escritores, poetas, livres pensadores, navegadores da internet... Um aberto para a manipulação da informação e da emoção?

 

Voltando ao quarto do meu filho, observo que tudo está desarrumado. A cama continua do jeito que estava quando ele acordou, roupas usadas misturadas com roupas limpas, meias jogadas por todos os lados. Mais uma vez e inutilmente reclamo, escutando a mesma razão que se resume na pergunta “para que ‘arrumar’, se depois tudo voltará ao estado caótico como se encontra?”

 

Na minha infância esta pergunta não fazia sentido. O permanente era a ordem (o cosmo) e não o caos. O "apropriado" - entre parentes - no primeiro parágrafo se justifica porque não faz mais sentido falar em algo apropriado - justo e perfeito - em um mundo caótico.

 

Hiran de Melo é professor da UFCG


Data: 20/11/2014